domingo, 15 de abril de 2018

Memórias do I Porto-Lisboa no rescaldo de uma visita ao Museu do Ciclismo (nas Caldas da Rainha)


Charles George,vencedor do I Porto-Lisboa
A recente passagem pela formosa cidade das Caldas da Rainha abre caminho para a memória que hoje vamos evocar nas nossas vitrinas virtuais. A história leva-nos até 1911, ano em que se disputou a primeira grande prova do ciclismo português: a clássica Porto-Lisboa. 

Esta memória foi tema de conversa na nossa passagem pelo Museu do Ciclismo, situado precisamente nas Caldas da Rainha, ao qual efetuamos uma breve mas fascinante visita que nos levou a percorrer inúmeros capítulos da História de uma modalidade popular e muito acarinhada em Portugal. Ali, fomos guiados pelo conhecido entusiasta e profundo conhecedor da(s) História(s) do ciclismo nacional e internacional, Mário Lino, figura ilustre da modalidade (enquanto historiador) que nos deixou verdadeiramente encantados com as suas memórias velocipédicas. Uma delas abordou precisamente a primeira edição da corrida Porto-Lisboa, realizada a 5 de novembro de 1911. Esta foi, como já foi referido, a primeira grande competição velocipédica a surgir no nosso país, e que para muitos historiadores terá servido de rampa de lançamento para a atual prova rainha do ciclismo luso, a Volta a Portugal. 


Recuando um pouco mais no tempo, e em jeito de nota de rodapé, para lembrar que os primeiros registos de competição velocipédica em Portugal remontam ao século XIX. Reza a História que em 1885 no âmbito das competições de atletismo organizadas pelo Ginásio Club Português decorrem no Hipódromo de Belém corridas de bicicletas, tendo nelas participado e triunfado nomes como Domingos Basto, Jorge Norton, ou Herbert Dagge, este último tido como o pai do ciclismo em Portugal. É nesse mesmo século XIX que aparece o primeiro grande ciclista português, o figueirense José Bento Pessoa, que até finais deste século vence inúmeras provas – realizadas, sobretudo, em velódromos – que se vão disputando em Lisboa e no Porto, mas também no estrangeiro.

Nos inícios do século XX o ciclismo ganha força em Portugal, com a ocorrência das provas de estrada, como é o exemplo do Caldas-Lisboa (1901), do Grande Prémio de Outono (1906), ou do Campeonato da Rampa (1908), entre outras. Esta popularidade terá levado a que em 1911 a União Velocipédica Portuguesa (UVP) idealizasse uma prova de maior calibre, à semelhança do que acontecia em França e Itália, por exemplo, onde clássicas de uma só etapa como a Bordéus-Paris ou a Milão-San Remo começavam a centrar em si os olhares de um número crescente de entusiastas. Ainda segundo a História, a primeira vez que a UVP tentou colocar em prática o Porto-Lisboa, a intenção saiu gorada por falta de participantes! Facto ocorrido em 1910, quando dos inicialmente 20 inscritos naquela que seria a primeira edição da clássica apenas três marcaram presença na linha de partida! Face a isto, a realização da prova foi cancelada.  


Tal não iria acontecer no ano seguinte, quando a UVP lançou de novo a ideia de realizar a prova. Assim, no dia 5 de novembro, 15 ciclistas compareceram na Praça da Batalha, no Porto, para dar vida aquela que hoje encarada como a primeira grande competição de ciclismo a ter lugar em Portugal e que durante a sua existência foi considerada a grande clássica velocipédica cá do burgo. Nesse dia, ou melhor, nessa noite, já que os ponteiros do relógio marcavam a uma e meia da manhã, partiram da Praça da Batalha os seguintes ciclistas: Alberto Albuquerque, Luís Baptista, Joaquim Marques de Sá, Artur de Campos, Charles George, Joaquim Dias Maia, Carlos Fernandes, Luís Policarpo da Silva, Joaquim de Oliveira, João de Lacerda, José da Costa Nascimento, Joaquim Delgado, Faustino Rosa da Silva, Silvério Rocha e Laranjeira Guerra. Homens cujos nomes entram pois na História. Segundo registos da atual Federação Portuguesa de Ciclismo, a prova teve inúmeras peripécias ao longo dos seus 340km – a distância entre as duas maiores cidades do país –, como, por exemplo, o facto de um grupo ter seguido por Espinho e outro pelos Carvalhos. Outro episódio caricato alude ao acordo para divisão do prémio final entre Laranjeira Guerra, João Lacerda e Faustino Rosa, os quais estavam certos da desclassificação dos seus colegas que haviam seguido pelo lado errado. Porém, a caravana lá chegou a Lisboa, 17 horas/48minutos/34 segundos após a partida, tendo o francês Charles George (do Lusitano) cortado a meta na primeira posição. No entanto, este seria um falso arranque para a clássica, tendo a UVP anulado a prova pelas irregularidades atrás descritas. 


Como já foi dito, o Porto-Lisboa foi até ao aparecimento da Volta a Portugal a prova mais popular do ciclismo nacional, juntando nas estradas por onde serpenteava, e desde a sua primeira edição, largos milhares de pessoas para ver e incentivar o pelotão. A clássica realizou-se até 2004, sendo que ao longo da sua história teve algumas interrupções, umas vezes por falta de verbas para a colocar na estrada, outras devido às duas Guerras Mundiais. O já referido aparecimento da Volta a Portugal (em 1927) e o facto de nos anos 70 a clássica ser dividida em duas etapas acabaria por anunciar uma lenta morte anunciada, algo que iria acontecer no início do novo milénio. 


Estes foram alguns dos factos históricos que tivemos oportunidade de conhecer, ou reavivar, na vista ao Museu do Ciclismo, pela mão da verdadeira enciclopédia humana sobre tudo o que rodeia esta modalidade, o senhor Mário Lino. Ele é o grande dinamizador deste espaço sagrado do ciclismo, foi ele que doou o seu imenso e rico espólio para criação deste museu, que além de deliciosas fotografias que nos levam a visitar décadas e décadas de história do ciclismo em Portugal, agrega ainda troféus, camisolas, páginas e recortes de jornais, bicicletas (pois claro) e muitos outros documentos históricos que nos deixaram deslumbrados. «Esta é apenas uma pequena parte do meu espólio. Tenho muito mais!», palavras do próprio Mário Lino, que ofereceu então parte da sua coleção não só à sua cidade das Caldas da Rainha, como também, e sobretudo, ao ciclismo e à sua História. Bem haja. 


Terminamos esta nossa evocação à primeira clássica Porto-Lisboa com uma série de fotografias por nós registadas na inesquecível visita ao Museu do Ciclismo, destacando as primeiras duas imagens da série, onde em primeiro lugar surge a histórica ficha de participação no I Porto-Lisboa assinada pelo vencedor da prova, Charles George, ou como Carlos Jorge, como o próprio se apresentou – e aqui reside um apontamento curioso! – e também a vitrina dedicada única e exclusivamente a esse histórico dia 5 de novembro de 1911. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário