quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Flashes Biográficos (14): Joaquim Meirim


Joaquim MEIRIM (Futebol): Entendo que uma vida sem memórias é como que um caderno em branco ou um álbum sem fotografias. Isto a propósito da recente comemoração de mais um Dia do Pai, mais um dia em que o meu (pai) vagueou pela minha mente, ali deixando recordações de uma ligação (física) que terminou cedo demais... Foi ele, o meu pai, que me incutiu a paixão pelo futebol. Paixão que entretanto assume hoje contornos de amor eterno, e nesse aspeto acho mesmo que o superei no tal encantamento pelo belo jogo. Recordo muitos diálogos mantidos pela noite dentro com ele, muitos deles em torno do futebol, ouvindo atentamente as suas histórias sobre as lendas do passado que imortalizaram um futebol de um tempo que eu não vivi, mas que de tanto ouvir e ler quase que posso afirmar alegremente que tive o privilégio de assistir in loco a esses longínquos momentos de magia.

Esta breve nota nostálgica leva-nos para a história de um homem marcou vincadamente uma era do futebol português, mesmo não tendo alcançado nele a glória que outros (com muito menos conteúdo intelectual e profissional) conquistaram. Sobre ele o meu pai falava vezes sem conta, apelidando-o de "maluco", mas um maluco no bom sentido da palavra - se é que este adjetivo pode ser pronunciado no bom sentido -, um maluco genial, um adiantado mental para a sua época. Esse homem é Joaquim Meirim, figura fascinante e controversa do futebol lusitano das décadas de 70 e 80. Hoje há ainda quem o descreva como um furacão que surgiu nos palcos principais do nosso futebol, um homem cuja peculiar personalidade abalou o Portugal futebolístico de então. Transportando Meirim para o presente poderíamos encara-lo como um clone de José Mourinho, pela tal personalidade controversa, pela convicção com que sustentava as suas argumentações - sobretudo as mais irreais aos olhos de um cidadão vulgar -, pela eloquente forma como articulava essa mesma argumentação - mais parecendo um filósofo da bola - e acima de tudo pelos seus então inovadores e pouco convencionais métodos de trabalho. Se Mourinho hoje é o mestre dos mind games, Meirim foi o inventor desse ludibriante estilo de comunicação futebolística.

Joaquim Meirim mudou um futebol português que vivia ainda um pouco ressacado do momento de fama obtido no Mundial de 1966, incutindo-lhe uma estranha forma de vivacidade e excentricidade. Sim, Meirim era um excêntrico, um excêntrico maluco, como dizia o meu pai. Um revolucionário, é isso. Mas quem era afinal esta figura? Nasceu no Minho, em Monção mais concretamente, no dia em que se comemoravam 25 anos da implantação da República em Portugal - 5 de outubro de 1935. O pai, o homem que admirava mais do que tudo, havia sido proibido por Salazar de exercer a atividade de professor primário, devido às suas inclinações políticas, as mesmas que o filho Joaquim tanto iria evidenciar ao longo da sua carreira e que tantos dissabores lhe causaram. A família Meirim mudou-se para Lisboa, tendo o pai agarrado o ofício de sapateiro em Alcântara. Foi ali, num meio pobre onde reinava a classe operária, que Joaquim Meirim cresceu e se fez homem. Pouco ou nada se sabe de Meirim enquanto futebolista do símbolo maior de Alcântara, o Atlético. O futebol era por aqueles dias apenas um romance de fim de semana para Joaquim Meirim, que ganhava a vida como empregado de escritório. Mas os romances por vezes dão em casamento, quando existe paixão e certezas de que é com aquele par que queremos partilhar a nossa existência. E Meirim sabia desde cedo que o seu lugar era no comando de futebolistas. Após pendurar as chuteiras noutro mítico emblema bairrista da capital, no caso o Oriental, Joaquim Meirim obtém com 27 anos o curso de treinadores, ministrado pelos mestres José Maria Pedroto e Fernando Vaz. Aos ensinamentos absorvidos na Cruz Quebrada durante a referida formação, Merim acrescenta o seu peculiar e controverso estilo, de palavras simples mas ao mesmo tempo eloquentes e bombásticas, aliado a metodologias de treino revolucionárias e a uma relação treinador-jogador pouco comum para a época. Em 1967/68 tem a primeira experiência mais a sério no exercício do ofício que sempre sonhou. Orientou a CUF, tirando o mítico emblema da cauda da tabela até ao sétimo lugar da mesma.

Adivinhando a entrada em cena de um treinador diferente, o presidente do Varzim, João Fernando, lança dois anos mais tarde o canto da sereia a Meirim, que prontamente viaja até ao norte para fazer história. Quiçá o ponto alto da história de Meirim no Atlas do Futebol Português. Os Lobos do Mar alcançam um inédito 7.º lugar - terminando o principal campeonato português à frente do FC Porto, por exemplo. Meirim salta então para as capas de jornais, não só pelo feito alcançado ao serviço do modesto clube poveiro mas pela sua forma de trabalhar e de ser. Ele apresentou ao futebol nacional estranhas metodologias de treino, ao levar, por exemplo, os jogadores para a praia ou para matas e montanhas ao invés de os exercitar nos retângulos de jogo. Outro traço forte da sua personagem enquanto condutor de homens era a apetência para a psicologia, na sua exímia capacidade de moldar a mente dos seus atletas. E aqui introduzo uma outra lembrança do meu pai, a história que ele me contou inúmeras vezes sempre que o nome de Joaquim Meirim vinha à baila. A famosa história do guarda-redes Benje, o tal que sem oportunidades no Benfica viajou para a Póvoa de Varzim onde se tornou no melhor keeper do... Mundo! O rótulo foi dado pelo próprio Meirim, que para motivar o seu guardião incutia-lhe precisamente na mente esse estatuto, o de melhor do planeta. E o angolano Pedro Benje entrava nas quatro linhas com esse peso nas costas, defendendo a baliza do Varzim com  espetacularidade, mais parecendo um gato negro a voar para agarrar todas as bolas que se lhe deparavam pela frente. A culpa do melhor momento de Benje foi obviamente de Meirim, «o psicólogo, o pedagogo, o padre, o preparador físico, o tático», como ele próprio se definia enquanto treinador. Um treinador humilde e modesto, como tantas e tantas vezes se auto-caracterizou.

A excelente temporada na Póvoa leva-o na temporada seguinte a regressar à capital, desta feita para treinar o quarto grande do futebol nacional, o Belenenses. Em Belém a meta traçada no início da época foi simples: ser campeão nacional. Muitos pensaram que Meirim estaria louco! Mas ele era um louco, um génio louco. Na pré-época aplicou os seus inovadores métodos de treino, levando os jogadores a correr para a praia e para as matas de Monsanto. Ao invés da bola os atletas trepavam às árvores, mais parecendo tarzans no meio da selva. A televisão nacional e os jornais centravam atenções naquele Belenenses e em Meirim de um modo muito particular, que aproveitando o mediatismo que detinha por aqueles dias lançava declarações bombásticas em direção aos adversários no sentido de os desestabilizar. Lá está, os famosos mind-games. Ao mesmo tempo incutia na mente dos seus jogadores capacidades que eles próprios desconheciam possuir, a título do que fez com Benje, que estava convencido de que era mesmo o melhor do Mundo. Mas no Belenenses as coisas não correram como o esperado, e Meirim foi destituído do cargo. A sua carreira prosseguiu noutras paragens (Boavista, Leixões, Salgueiros, Beira-Mar, Desportivo das Aves, Sanjoanense, Gil Vicente, Louletano, Estrela da Amadora e Lusitano de Évora) no que restou daquela década de 70 e em lampejos da de 80. Em finais do milénio passado ainda regressou aos bancos para um fugaz aparição no Desportivo de Beja, mas a sua estrela há muito que se tinha apagado. Incompreensivelmente apagado. Porquê? É uma pergunta para a qual não encontramos resposta, até porque Merim era um adiantado mental, um inovador, um revolucionário. Sim, um revolucionário, e provavelmente está aqui a resposta para a perguntar anterior, ou seja, terá sido por isso, em parte, que as portas do futebol português se foram fechando lentamente para ele, um ativista político, um dirigente sindical, um confesso militante do Partido Comunista Português, facto que lhe valeu tantos dissabores. Como por exemplo, o despedimento do Leixões, assim que o presidente deste emblema soube que Joaquim Meirim iria concorrer à Câmara de Matosinhos pela Frente Eleitoral Povo Unido. Mas Meirim era um homem de convicção forte, um defensor acérrimo dos seus ideais, e nunca se vendeu ao poder do futebol. Foi um homem à frente do seu tempo. Muito à frente. Joaquim Meirim deixou o Mundo terrestre em maio de 2001 vítima de doença prolongada, tal como o meu pai, a quem dedico esta breve memória de hoje.

Flashes Biográficos (13): Manuel Oliveira


MANUEL OLIVEIRA (Futebol): Génios há que nunca viram reconhecidas as suas obras nas (mais diversas) áreas em que se notabilizaram. No futebol, em concreto, foram muitas as figuras que imprimiram o seu cunho na história do jogo mas que por "esta ou aquela razão" - inveja, ausência de mediatismo, personalidade controversa, são algumas das razões que poderemos apontar para justificar o facto de não figurarem no hall of fame do futebol - passaram ao largo das (merecidas) vénias e da fama global. É o caso do nosso mestre da tática de hoje, uma personalidade singular, ou não tivesse reunidas em si características tão distintas como inovação, disciplina, sabedoria, polémica, ou frontalidade. Manuel Oliveira, a sua graça, indiscutivelmente uma dos maiores treinadores da história do futebol português, e porque não dizê-lo a esta distância do(s) tempo(s) em desempenhou com mestria a sua função... um dos maiores a nível internacional. Afirmação exagerada? Se calhar não, e já vamos ver porquê?

Manuel Oliveira Santos, nasceu a 29 de maio de 1932, na margem sul, Distrito de Setúbal, mais precisamente em Pinhal Novo. Oriundo de uma família pobre - o pai era ferroviário - foi de pé descalço, como tantos outros meninos da época, que se deixou enamorar, ali, ao lado do lar, pelos encantos do belo jogo. Travou-se de amores com o futebol enquanto arte, espetáculo, simplicidade, e não com o futebol negócio, jogo de interesses, povoado por vilões com que muitas vezes foi confrontado ao longo da sua ímpar carreira e contra quem sempre lutou. A sua entrada oficial no desporto rei dá-se em 1949 pela mão de outro lendário treinador que teve grande influência no percurso que Manuel Oliveira iria trilhar enquanto treinador, Fernando Vaz. Este ícone do futebol luso dirigia na altura os juniores B do Sporting, que defrontariam o Estrela, um combinado formado por jogadores da margem sul - um verdadeiro alfobre de grandes futebolistas ao longo da história -, onde pontificava o jovem Manuel - que até então havia tido uma curta passagem pelos escalões de formação do Barreirense - que nesse dia, na posição de interior/extremo direito, fez uma exibição de gala, culminada com dois golos que derrotaram os poderosos leões, facto que levaria Vaz a aproximar-se do jovem, lançando-lhe além dos merecidos elogios um convite: treinar no Sporting. Manuel Oliveira estava desta forma prestes a transpor a fronteira entre o sonho e a realidade, ele, que tinha como ídolo um vulto que atuava na principal equipa leonina, Carlos Canário. O jovem de Pinhal Novo convence Fernando Vaz, passa no teste, e efetua duas temporadas de grande nível na equipa júnior do gigante de Lisboa. Como o próprio Manuel Oliveira fez questão de confessar décadas mais tarde nas suas memórias, aqueles dois anos foram de extrema importância para a sua formação enquanto homem do futebol. Aprendeu imenso, não só com treinadores como também com os jogadores que formavam aquele poderoso Sporting Clube de Portugal, onde pontificavam os 5 Violinos (Peyroteo, Albano, Vasques, Travassos, e Jesus Correia).

Conduzindo a bola, nos tempos de jogador da CUF
Com naturalidade e merecimento Manuel Oliveira transita para os seniores do clube de Alvalade, onde convive com alguns destes vultos, que a bem dizer dificultaram a sua entrada no onze titular leonino ao longo das cinco épocas em que envergou a camisola verde-e-branca. Foi quase sempre escolha na equipa de reservas, e a espaços conheceu a titularidade na primeira categoria - ou equipa principal, como hoje é denominada - tendo atingido o topo da carreira de futebolista com a conquista do título de campeão nacional de 51/52. Nas épocas em que defendeu o leão conheceu inúmeros e sonantes treinadores, como, a título de exemplo, Joseph Szabo, Tavares da Silva, ou Randolph Galloway. Mas houve um que indiscutivelmente o marcou, ainda de acordo com as suas memórias: Fernando Vaz.
Ainda como jogador representou o Atlético, durante uma temporada. Pelo meio passou pela seleção nacional militar, a qual representou em oito ocasiões. Posteriormente veio a CUF, onde jogaria seis épocas, tendo neste emblema pendurado as chuteiras em 62/63 para substituir no banco o então treinador Anselmo Pisa. Manuel Oliveira tinha então 30 anos de idade. E é aqui que se dá início à verdadeira história desta lenda.

O início do percurso lendário

Uma das últimas fotografias do mestre
Dezembro de 1962, um ano inesquecível para Manuel Oliveira, que por esta altura se vê diante da responsabilidade de pegar na equipa da CUF que ocupava uma posição perigosa no Campeonato Nacional da 1ª Divisão. Grupo Desportivo da CUF que foi o primeiro clube-empresa a nascer no nosso país, e muito provavelmente aquele que nesta condição mais notoriedade atingiu na história do futebol luso. Numa altura em que nem todos os futebolistas viviam única e exclusivamente da bola, Manuel Oliveira acumulava com a atividade desportiva a função de empregado de escritório na empresa do Barreiro. Após a 9ª jornada do Nacional do escalão maior do futebol português o capitão do emblema fabril é chamado a pegar na equipa de modo a evitar a catastrófica descida de divisão que estava então eminente. Nas declarações à imprensa da altura, Manuel Oliveira admitiu a sua inexperiência enquanto treinador, mas desde logo mostrou ambição e vincou o compromisso de que iria dar o seu melhor para que a equipa voltasse aos resultados positivos. Dito e feito. A CUF fez um resto de época imaculada, remodelou-se nos aspetos físicos e técnico-táticos sob orientação do seu ex-capitão de equipa - que passou então só a desempenhar o cargo de treinador - e acabou por escapar à temível despromoção ao alcançar um tranquilo 11º lugar. Estava assim dado o pontapé de saída de uma grande carreira para o jovem técnico.

E quem pensasse que este pequeno grande feito poderia ter sido obra do acaso enganou-se redondamente na temporada seguinte, em que Manuel Oliveira conduziu a equipa do Barreiro a um inédito e inesperado - só para quem ainda não conhecia os métodos de trabalho e a sabedoria técnico-tática do cidadão de Pinhal Novo - 5º lugar. Mas a escalada do sucesso do jovem treinador estava longe de terminar. Em 64/65 a fasquia é elevada com a conquista do... 3.º lugar! O prémio deste brilharete foi a qualificação inédita dos barreirenses para a edição seguinte da Taça das Cidades com Feira - antecessora da Taça UEFA. E se o futebol português começava a dar-se conta da mestria do técnico o resto da Europa iria conhecê-la em 65/66 quando o poderoso Milan caiu no Barreiro por 2-0, na primeira mão da segunda eliminatória da citada competição europeia. Manuel Oliveira tinha passado definitivamente de aprendiz a mestre.

A sua faceta de homem honesto e frontal iria, contudo, e a partir daqui, chocar de frente com o tal lado negro do futebol, o lado dos interesses, da intriga, do conflito e do oportunismo. Numa entrevista concedida ao jornal A Bola no regresso da partida de Milão, onde a CUF perdeu por igual resultado ao conseguido na primeira mão e obrigando assim os milanistas a uma partida de desempate, o treinador, em jeito de desabafo, enumerou as várias dificuldades que afetavam a sua equipa, desde logo a ausência de apoio - sobretudo vindo dos diretores da empresa. Esta entrevista acabaria por custar o lugar ao treinador, que a partir dali levaria o seu talento para outras paragens. E foram muitas ao longo das mais de três décadas que se seguiram. Tantas que seria de certa forma exaustivo para o leitor ter conhecimento dos contornos de cada uma delas (mas caso o leitor pretenda fazer esse exercício, aconselhamos vivamente a leitura das fascinantes Memórias de Manuel Oliveira, editadas em livro. De certo que não se irá arrepender). Leixões, Barreirense, Sanjoanense, Farense, Olhanense, Benfica de Nova Lisboa (Angola), Lusitano de Évora, Espinho, Beira-Mar (onde foi treinador de Eusébio da Silva Ferreira), Vila Real, Portimonense, União de Leiria, Marítimo, Vitória de Setúbal, Louletano, Seleção da Guiné Bissau, Fafe, Varzim, Nacional da Madeira, Sintrense, Desportivo de Beja, Gondomar, Imortal e Lusitanos de Saint-Maur (França) foram emblemas que beberam da sabedoria do mestre. Em quase todas elas fez história. Umas vezes evitava a temida descida de divisão, outras conduzia a nau desde os caminhos tortuosos das divisões secundárias até bom porto, isto é, à 1ª Divisão, noutras ainda criou grupos que combinavam arte, garra e inovação, batendo o pé a quem quer que fosse, grande ou pequeno, tombou vezes sem conta às mãos do mestre Oliveira. A sua já referida personalidade frontal - embora ainda hoje muitos preferem continuar a recorda-lo como polémico e controverso - valeu-lhe inúmeros dissabores, que, por várias ocasiões, barraram a sua continuidade ao leme dos notáveis projetos futebolísticos que foi construindo.

Inovador no plano tático

4-4-2
Já escrevemos que Manuel Oliveira foi um treinador inovador, um homem que deixou marca no futebol. O Mundo inteiro, ou quase, ainda hoje atribui a autoria do 4-4-2 ao inesquecível Brasil de 1970, que no Mundial do México nesse ano alcançou o tri. Justo será dizer- que o resto do Mundo terá travado conhecimento com tal sistema tático através de Pelé e companhia, mas anos antes em Portugal já um certo treinador colocava - pela primeira vez - esta tática em ação. O seu nome? Manuel Oliveira. Facto ocorrido a 15 de fevereiro de 1965, quando a CUF defrontou em casa o poderoso Benfica de Eusébio, Coluna, José Augusto, Simões, Torres, entre outros vultos encarnados da década de 60. Oliveira surpreendeu todos ao colocar em campo uma tática nunca dantes vista, o tal 4-4-2, que viria a dar os seus frutos na sequência de uma vitória por 2-0. Espantado com este sistema o então técnico do Benfica, o romeno Elke Schwartz, queixou-se que os barreirenses haviam ganho o jogo com uma tática de... basquetebol! Pois, mas cinco depois o Brasil encantou e ganhou o Mundo com a mesma tática. Teria o escrete de Pelé, Jairzinho, Tostão, Rivelino, ou Carlos Alberto bebido da sabedoria de Manuel Oliveira? Ou simplesmente tudo não passou de uma coincidência? É uma questão para a qual ainda hoje não se encontra resposta.

3-5-2
Mas não se ficou por aqui a criatividade tática do homem de Pinhal Novo. Ao leme do Barreirense apresenta na época de 69/70 um outro sistema tático então nunca dantes visto em Portugal, o 3-5-2. Capítulo histórico que foi escrito em dezembro de 1969, altura em que o emblema do Barreiro se deslocou à Póvoa de Varzim para defrontar a turma local em mais um jogo do Nacional da 1ª Divisão. Visionário, sábio e astuto Manuel Oliveira voltou a surpreender o Planeta da Bola. No plano internacional, este sistema atingiu o pico da fama no Mundial de 2002, altura em que o Brasil venceu o penta-campeonato. Mas como não há duas sem três, em 82/83, ao serviço do Vitória de Setúbal, o mestre da tática volta a inovar no plano tático, ao apresentar no Estádio do Bonfim, diante do FC Porto, a sua equipa disposta em 3-4-3, sistema também na época nunca dantes visto por estas bandas. A sua sabedoria foi ao longo de décadas não só colocada ao dispor das centenas de atletas (Jorge Jesus, por exemplo, foi um deles, e que mais tarde, e já na qualidade de treinador, confessou ter sido influenciado por Oliveira) como também por outros colegas de profissão. Com mais de 600 jogos no currículo este notável pensador de jogo ministrou inúmeros cursos de formação tática, moderou colóquios, palestras, foi comentador de rádio, fundou a Associação Nacional de Treinadores, sempre na vanguarda do conhecimento.

3-4-3
Um verdadeiro génio da tática, homem de fortes convicções, intransigível, a quem faltou um reconhecimento maior por parte das altas instâncias do futebol lusitano. E quando nos referimos a este reconhecimento falamos de um patamar maior, e amplamente merecido, que devia ter sido atingido pelo mestre Manuel Oliveira, Ter treinado um Benfica, um FC Porto, um Sporting, ou mesmo a seleção nacional, seria um prémio mais do que justo para uma figura que é indiscutivelmente um dos nomes mais sonantes - no que ao capítulo do treino diz respeito - da história do futebol em Portugal. Mas, e voltando ao início da nossa visita de hoje, nem sempre todos os génios deste Mundo foram aceites - talvez pela sua maneira diferente de ver e estar na sociedade - e reconhecidos por esse mesmo Mundo. Manuel Oliveira foi, talvez, um desses génios maldosamente ignorados. Injusto, muito injusto, é o que nos apraje dizer.
Manuel Oliveira faleceu a 20 de junho de 2017. 

Flashes Biográficos (12): Joreca


JORECA (Futebol): Durante largas dezenas de décadas os laços de sangue entre Portugal e Brasil ajudaram a que milhares de jogadores e treinadores cruzassem o Atlântico em busca de uma oportunidade para alcançar o sucesso no mundo do futebol. Uma viagem cuja balança pende mais - muito mais - na ligação Brasil - Portugal, do que o inverso, ou seja, foram mais os brasileiros que vieram tentar a sua sorte no futebol português do que lusitanos em busca do el dorado em Terras de Vera Cruz. E se ao longo da história os portugueses se habituaram a ver atletas de origem brasileira envergar as cores da seleção nacional lusa - Lúcio foi o pioneiro, nos anos 60, imitado décadas mais tarde por Deco, Pepe, ou Liedson - e treinadores a orientar a equipa das quinas em grandes competições internacionais - Otto Glória foi o mestre que conduziu os Magriços de Eusébio e companhia ao 3º lugar no Campeonato do Mundo de 1966, enquanto que num passado recente o sargentão Scolari foi vice campeão da Europa em 2004, e 4º classificado no Mundial de 2006 - é mais complicado, bem mais, imaginar um português a vestir a mítica camisola canarinha (Casemiro do Amaral foi o único a fazê-lo) ou sequer a sentar-se no banco para orientar o escrete numa qualquer partida de futebol. Impensável, mas não impossível. Como assim? Nesta última função (a de treinador) a resposta está em Joreca, a alcunha de Jorge Gomes de Lima, lisboeta de berço, nascido no longínquo 7 de janeiro de 1904, que como principal cartão de visita tem o facto de ter sido um dos dois únicos estrangeiros a ter o privilégio de treinar a principal seleção do Brasil!

Como já vimos, Jorge Gomes de Lima nasceu em Lisboa no início do século passado, tendo ainda cedo cruzado o Atlântico rumo ao país que haveria de fazer dele um dos melhores treinadores dos anos 40. Precisamente no início da década de 40 Joreca - a alcunha que ganhou pouco depois de assentar arraiais em solo sul-americano - licenciou-se em Educação Física na Universidade de São Paulo, a cidade que o acolheu e que o eternizou no planeta da bola.
Antes mesmo de descobrir a sua vocação como condutor de equipas fez uso da sua extrema habilidade com as palavras, ao tornar-se num apreciado jornalista desportivo, escrevendo crónicas em vários jornais paulistas e espalhando os seus vastos conhecimentos sobre o belo jogo nas frequências da rádio, na qualidade de comentador.
O salto para o terreno de jogo foi dado de forma discreta. Deu as primeiras preleções táticas na seleção paulista de amadores, ao mesmo tempo em que descobria uma outra faceta dentro da modalidade, a de árbitro!
Joreca revelava-se um homem dos 7 ofícios no desporto rei, e foi ele que na qualidade de árbitro dirigiu o jogo de estreia de um tal de... Leônidas da Silva, com a camisola do São Paulo Futebol Clube. Efeméride ocorrida em 1942, precisamente um antes de Joreca assumir o comando técnico do tricolor paulista.
Um casamento que iria durar até 1947, tendo sido pautado por inúmeros momentos de felicidade para ambos os conjugues. No primeiro jogo em que se sentou no banco dos paulistas o portuga Joreca - que  a meio da viagem havia substituído na função o técnico uruguaio Conrado Ross - não brincou em serviço, que o diga a Portuguesa Santista, despachada com uma goleada de 6-1. Joreca entrava com o pé direito. Esse primeiro ano ao serviço de São Paulo seria histórico. Até final da temporada disputou mais 12 partidas, tendo vencido 11 e empatado apenas uma, ante o rival Palmeiras, precisamente o derradeiro encontro do campeonato, o empate que colocaria um ponto final no longo jejum de 12 anos em que o São Paulo esteve arredado dos títulos.

O São Paulo era campeão estadual pela mão de um português, uma conquista marcada pela visão revolucionária daquele homem nascido do lado de lá do imenso Atlântico aliada ao brilho do diamante negro Leônidas da Silva, que assim festejava o seu primeiro título com a camisola tricolor.

O trabalho de Joreca não passou despercebido aos responsáveis da Confederação Brasileira dos Desportos (antecessora da atual Confederação Brasileira de Futebol) que no ano seguinte convidaram o luso a treinar nada mais nada menos do que a seleção brasileira! A tarefa seria dividida com Flávio Costa, que juntamente com o treinador português formou assim uma espécie de comissão técnica para dois jogos amigáveis que o escrete disputou em maio de 1944. Ambos tiveram como adversário o Uruguai, tendo o primeiro encontro sido realizado no Estádio São Januário, no Rio de Janeiro, saldado por um robusto triunfo brasileiro por 6-1. Quatro dias depois repetiu-se a dose, embora com números mais modestos, no Pacaembu, de São Paulo, onde a seleção derrotava os vizinhos charruas por 4-0.

A carreira de Joreca no combinado nacional do Brasil foi curta, pois logo de seguida Flávio Costa segurava o leme da equipa sozinho até 1950, ano em que perdeu o título mundial para o Uruguai em pleno Maracanã!

Após ter-se tornado no PRIMEIRO ESTRANGEIRO A TREINAR A SELEÇÃO BRASILEIRA - facto histórico, muita atenção! - Joreca voltou ao São Paulo, onde conquistaria mais dois títulos de campeão estadual. O primeiro em 1945, e o segundo um ano depois, este de forma invicta (!), algo nunca mais reptido na história do tricolor paulista. Saiu do clube em 1947, com um fabuloso registo de 166 jogos disputados, 109 vitórias conquistadas, 31 empates averbados, e somente 26 desaires, sendo ainda hoje o terceiro treinador na história do São Paulo que mais títulos oficiais venceu.

Joreca deixou a casa que o catapultou para a fama, e que ele que próprio fez regressar à fama, há que sublinhá-lo, mas não deixou o seu amado futebol.
Em janeiro de 1949 espeta um punhal no coração dos acérrimos adeptos do tricolor paulista ao assinar pelo eterno rival Corinthians, emblema que orientou durante 52 partidas, tendo entre outros feitos lançado para a rivalta um dos maiores ídolos da fiel torcida corintiana, Baltazar, o cabecinha de ouro. O sucesso de Joreca no Coringão foi muito curto, já que no final desse ano de 1949 - 5 de dezembro para sermos mais precisos - o português mais brasileiro de sempre - no que ao futebol diz respeito - morria vitimado por um ataque cardíaco.
Além do desporto rei ainda fez uma perninha no boxe, subindo ao ringue em duas ocasiões, e em ambas saiu vitorioso!

Legenda das fotografias:
1- Jorge Gomes de Lima, eternizado como Joreca
2-Como árbitro da Federação Paulista de Futebol
3-A equipa do São Paulo que venceu o campeonato estadual de 1943, onde Leônidas da Silva (é o jogador do meio na fila de baixo) assumiu o papel de estrela
4-O São Paulo campeão estadual de 1946, de forma invicta. Joreca é o primeiro elemento (da direita para a esquerda) da fila de cima
5-Abraçado pelos seus pupilos do tricolor paulista após a conquista de mais uma vitória