Corria o ano de 1980 quando a CERH cria aquela que seria então a sua terceira prova continental a nível de clubes, a
Taça CERS. Quis o destino que o batismo daquela que hoje em dia é denominada de Taça WSE (World Skate Europe) fosse vivido como um autêntico conto de fadas por um pequeno clube português pouco habituado a grandes conquistas nacionais ou internacionais. Foi uma história em que David derrotou Golias, dando assim azo a um dos capítulos mais surpreendentes e ao mesmo tempo memoráveis da história do hóquei patinado internacional. E essa epopeia foi vivida pelo modesto Grupo Desportivo de Sesimbra, que na temporada de 1980/81 – a primeira da vida da Taça CERS – conquistou o título mais importante dos seus – até à data – 77 anos de existência. Ao alcançar um brilhante 5.º lugar no
Campeonato Nacional da 1.ª Divisão da época anterior, o Sesimbra garantiu o direito marcar presença na edição de estreia da Taça CERS, juntamente com o
Valongo. Isto, porque o FC Porto, 4.º classificado, optou por não participar na nova competição, abrindo desta forma a vaga aos rapazes do sul do Tejo.
O tímido início da caminhada rumo à glória
Quis o destino que a turma do Distrito de Setúbal tivesse de disputar uma pré-eliminatória de acesso à nova prova da CERH, tendo como adversário os franceses do Roller Skating Cujan-Mestras, emblema da região de Bordéus. Cerca de 2500 pessoas marcaram presença no Pavilhão Gimnodesportivo de Sesimbra para testemunhar o batismo europeu da equipa da terra. Com um combinado experiente, composto por muitos “trintões”, o Sesimbra bateu o conjunto gaulês por 8-4, mas não ganhou para o susto, conforme escreveu Daniel Reis, jornalista da Gazeta dos Desporto, que cobriu esse encontro. «Faltavam menos de 5 minutos para terminar a primeira mão da eliminatória europeia que opôs o Sesimbra ao Cujan-Mestras e os franceses tiveram a eliminatória na mão. Os “trintões” da equipa portuguesa, praticamente a mesma que há uns 6 ou 7 anos representou o Grupo Desportivo de Lourenço Marques, começavam a dar evidentes sinais de esgotamento físico, e os franceses (alguns pareciam filhos de Garrancho, José Pedro, Adrião e companhia) recuperavam paulatinamente, no jogo e no marcador, chegando ao 4-5 aos 20 minutos e 10 segundos. Mas um remate desesperado de José Adrião, atirado bem da linha do meio do rinque, virou a sorte do jogo. Este sexto golo reabriu ao Sesimbra as possibilidades de não se ficar pela primeira eliminatória nesta sua estreia internacional no hóquei em patins. A saída quase simultânea de um hoquista francês para recuperar o patim e a suspensão do melhor dos elementos desta equipa, Chargureau, um louro com corda para dois jogos seguidos, aniquilou a resistência do Cujan. E mais dois golos de rajada deram ao Sesimbra, julgamos, a margem de segurança necessária para enfrentar a segunda mão desta eliminatória pré-eliminar da Taça CERS com alguma tranquilidade», escrevia o redator da Gazeta. 8-4, foi, pois, o resultado final deste primeiro encontro, em que Carlos Pereira (com 5 golos) e José Adrião (com 3 tentos) foram os marcadores de serviço da equipa lusa. E uma semana mais tarde, os sesimbrenses confirmaram a passagem aos quartos-de-final da prova europeia, desta feita com uma robusta vitória por 14-2.
Sorte foi madrasta em Noia
E na ronda seguinte surgiu no caminho dos portugueses um gigante do hóquei espanhol, o Noia. A primeira mão realizou-se na Catalunha. Jogo que os portugueses perderam por 6-3, mas com muitas queixas em relação à arbitragem espanhola (!!!!) por parte do treinador sesimbrense, Ernesto Meireles. O que é certo é que mesmo com a ajuda, ou não, dos árbitros seus conterrâneos, o Noia tremeu ante o Sesimbra. Com uma entrada forte em campo, os catalães abriram o marcador logo aos 3 minutos, pensando que aquela seria uma vitória fácil. Puro engano. Habituados (em Portugal) a ambientes adversos, os portugueses reagiram bem, e 3 minutos volvidos Carlos Cunha repôs a igualdade, fazendo tremer os locais. Incentivado pelos seus adeptos o Noia espicaçou, e marcou mais dois golos. O Sesimbra continuava a patinar com muita personalidade, e antes do intervalo José Pedro bateu o guardião Pla e reduziu a desvantagem.
Antes do descanso o Noia ainda fez o 4-2, mas na segunda metade o cenário do encontro mudou por completo. «Perante a surpresa dos adeptos da turma local, foram os sesimbrenses que mandaram no jogo, e, aí, não tiveram a sorte do seu lado. Porque, se tivessem tido a ponta de sorte que qualquer equipa tem de ter, a verdade é que o marcador viria a sofrer uma evolução muito diferente. Assim porque a sorte foi madrasta ao Sesimbra, a vantagem do Noia subiu para 5-2, volvendo aos dois golos de diferença à passagem do 10.º minuto do segundo tempo (nota: José Adrião fez o terceiro tento dos portugueses). Quando se entrava na ponta final da partida, os locais recuperavam um golo, fixando o resultado em 6-3», assim relatava os acontecimentos a reportagem da Gazeta dos Desportos.
Evitar artimanhas espanholas para ganhar com clareza impressionante
Apesar do desaire, Ernesto Meireles estava confiante para o jogo da segunda mão a sul do Tejo. «Tudo está ainda por resolver, porque este Noia não é não superior ao Sesimbra, que tem capacidade para anular a desvantagem e ultrapassar o obstáculo», disse o técnico luso, acrescentando que para tal bastava que os seus jogadores não se deixassem levar pelas “artimanhas” espanholas.
No retorno, a boa impressão que o Sesimbra deixou na Catalunha confirmou-se. Os portugueses voltaram a fazer uma grande exibição, e mesmo quando na segunda metade o Noia fez o 1-1 ninguém duvidava que os portugueses não passassem a eliminatória. E assim foi. Uma reta final avassaladora conferiu um triunfo robusto à turma de Ernesto Meireles, garças a dois golos de José Carlos, um de José Pedro, outro de Vítor Afonso, outro de José Adrião e outro de Carlos Garrancho. 6-1, o resultado final obtido com uma «clareza impressionante», conforme deu conta a Gazeta dos Desportos, numa grande jornada de hóquei que levou o estreante Sesimbra às meias-finais da Taça CERS.
Em Itália, o sol deu lugar à tempestade
Ultrapassado o obstáculo espanhol outro de teórico elevado grau de dificuldade se seguiu. O Amatori Lodi, conjunto oriundo de outro país gigante no Planeta do Hóquei em Patins, uma equipa que na opinião do jornalista Orlando Dias Agudo, da Gazeta dos Desportos, apresenta outro tipo de jogo, distinto dos espanhóis. «(Jogo) mais complicado, que faz mais nervos, que não é bonito à vista, mas é terrivelmente prático no aproveitamento de situações. (…) Mas é importante que se diga: o Sesimbra está a fazer um grande esforço para estar presente nesta competição. Os dinheiros não abundam, as receitas dos jogos mal dão para as estadias no estrangeiro. Que faz então correr os jogadores do Sesimbra? Talvez que a “fome” de mostrar a tudo e a todos que a vontade e o espírito de equipa ainda pode muito nos dias que vão correndo, que o “cinco” tem capacidade para fazer na Europa, que a conquista da taça é um sonho lindo que se poderá transformar em realidade», assim analisava este jornalista no lançamento da eliminatória.
E foi num pavilhão completamente esgotado que os portugueses efetuaram uma primeira parte «linda, onde por duas vezes o esboço de uma vitória sensacional esteve feito», mas na segunda metade veio a «derrocada, o desnorte, o barco sem rumo, dando ao parceiro da eliminatória fartos motivos de esperança para chegar à final», assim analisou a Gazeta dos Desportos um encontro realizado em Lodi e que os locais venceram por 6-3, curiosamente o mesmo resultado alcançado pelo Noia na ronda anterior. Por isso, a esperança numa nova reviravolta reinava após o soar do gong: «Noia foi a lição: quem consegue recuperar três golos a uma equipa espanhola, também o vai conseguir com uma equipa italiana. Porque o hóquei italiano é diferente do espanhol: à matreirice dos ibéricos corresponde o fechado do quadrado transalpino. Mas está lá, Garrancho para destruir qualquer quadrado, José António para furar qualquer barreira, José Adrião para desnortear os lados desse quadrado. Possível? Se o Noia foi…», escrevia então a Gazeta dos Desportos.
Portas da final abertas com uma nitidez profunda
E tanto era possível que acabou mesmo por acontecer. Na volta, em Sesimbra, mais uma exibição monstruosa dos lusos culminada com um esclarecedor triunfo por 10-1, que abriram com uma nitidez profunda as portas da final. O pavilhão da bela localidade do Distrito de Setúbal foi pequeno demais para presenciar este recital e hóquei da sua equipa. Ao Lodi não chegou a categoria de jogadores internacionais como Fontana, ou Fona, já que a turma portuguesa não só marcou golos a um ritmo endiabrado, como justificou ao longo da partida o avolumado score com que esta terminou. A superioridade refletiu-se amplamente no marcador, e aos 13 minutos já o encontro estava praticamente decidido a favor dos homens do sul do Tejo, que então já venciam por 5-0, deixando os italianos com ténues esperanças numa reviravolta. «E como foi isto possível? Quem presenciou o ambiente escaldante nas bancadas, não podia esperar por outro desfecho. O público presente nas bancadas soube transbordar para os jogadores do seu emblema todo o seu entusiasmo e vontade de vencer, tendo sido fácil o resto: italianos desnorteados, vencidos, nada puderam opor aos golos que iam nascendo na baliza de Fontana», escrevia o jornalista de serviço da Gazeta dos Desportos, que terminada a sua proza com a seguinte pergunta: «Quem se atreve a vencer o Sesimbra? Que responda quem quiser e… souber». Com seis golos na sua conta pessoal, Carlos Pereira foi o melhor marcador dos portugueses, que viram também José Pedro – por duas ocasiões –, Carlos Garrancho e Carlos Cunha fazer o gosto ao stick.
Inferno de Sesimbra empurrou a equipa para a glória
E assim chegávamos à final, onde pela frente o Sesimbra iria ter outra das surpresas desta edição inaugural da Taça CERS, os neerlandeses do RC Lichtstad. O emblema de Eindhoven havia deixado pelo caminho, nos quartos-de-final, o outro clube português envolvido na competição, o Valongo, sendo que nas meias-finais eliminou os italianos do Reggiana Hockey Club. A primeira mão da final foi disputada num sábado à noite no completamente esgotado Pavilhão Gimnodesportivo de Sesimbra, sob arbitragem do espanhol Hidalgo. E talvez porque estivéssemos numa final o início de jogo foi morno, com os dois conjuntos a estudarem-se mutuamente. Até que veio a explosão, o mesmo será dizer, o primeiro golo dos portugueses, por intermédio de Carlos Cunha, na sequência de um belo trabalho de José Adrião. «A torcida aquecia, estava aberto o caminho para o resultado sonhado, tanto mais que os homens da camisola branca, com vivos violeta, eram os que comandavam a movimentação da bola», escrevia a reportagem da Gazeta dos Desportos. Porém, os homens dos Países Baixos eram duros de roer, formavam um conjunto que nunca vira a cara à lura, e sempre que podiam lá se aproximavam da baliza de Fernando António, «rematando com força e quase sempre com boa pontaria, mas o guarda-redes do Sesimbra era um homem atento». Até que numa dessas jogadas o pavilhão sesimbrense levou um autêntico balde de água gelada. Van Gemert, desde a linha do seu meio campo, stica forte para o fundo das redes portuguesas. Estava feito o empate. O golo espicaçou os comandados de Ernesto Meireles, que voltaram a chamar a si o controlo da partida, fechando com atenção todos os caminhos – fossem de perto, ou de longe – da sua baliza, e ainda antes do descanso Carlos Cunha fez o 2-1. «Depois de uma primeira defesa de Van Dungen, após a qual Carlos Pereira lhe roubou a hipótese de completar a defesa, colocando-a (a bola) no stick de Carlos Cunha. Era o 2-1, renascer da esperança». E foi com grande vontade que os sesimbrenses voltaram ao rinque na segunda metade. Nos segundos iniciais, o capitão de equipa, José Pedro, dispara um “míssil” que elevou para 3-1 a vantagem dos portugueses. Carlos Pereira ainda apontaria o quarto golo do Sesimbra, que assim vencia o primeiro jogo da final por 4-1.
Saber sofrer com valentia e cabeça fria para depois fazer a festa
A vantagem na viagem para Eindhoven era de três golos. Curta ou confortável? O encontro da segunda mão da final ditou que esta foi uma vantagem que o Sesimbra soube segurar com muito sofrimento. Cabeça fria, valentia e coragem, foram três ingredientes que os portugueses usaram para trazer a taça para casa, após um jogo disputado num piso impróprio (de cimento) para a prática do hóquei em patins. Plantado ao ar livre, o rinque – localizado paredes meias com um cemitério! – do RC Lichtstad foi um dos grandes obstáculos que o Sesimbra teve de ultrapassar com bravura para ganhar a competição. Ainda por cima, a partida foi disputada num sábado de chuva, o que dificultou ainda mais a tarefa dos atletas. No que diz respeito ao jogo em si, os neerlandeses assumiram as rédeas nos minutos iniciais à boleia dos irmãos Van Gemert. Carlos Cunha, um dos principais artistas do Sesimbra, foi bem guardado por Trudo Van Gemert, mas mesmo apesar de terem mais tempo a bola em seu poder nos primeiros 25 minutos, os neerlandeses não criaram grandes situações para bater Fernando António. «A defesa do castelo estava mais do que organizada e o assalto resultava inútil»; escrevia Orlando Dias Agudo, jornalista da Gazeta dos Desportos encarregue de cobrir o jogo. Faltavam mais 25 minutos para que os experientes jogadores do Sesimbra acabassem com as esperanças dos novos e «cheios de vida e de força» rapazes de Eindhoven e conquistassem a taça. Porém, a missão dos portugueses complicou-se quando aos 3 minutos da segunda parte Peter Van Gemert desviou um passe de Habraken para o fundo da baliza de Fernando António, que 11 segundos depois sofreu um novo golo, desta feita apontado pelo próprio Habraken. O Sesimbra tremeu. A vantagem de três golos passava agora a ser apenas de um. Os neerlandezes cresceram, e na tentativa de igualar a eliminatória atiraram vezes sem conta do “meio da rua” em direção da baliza de Fernando António. No entanto, os pupilos de Ernesto Meireles disseram “presente”, e seguraram com valentia e mestria a magra vantagem no agregado dos dois jogos. E com os minutos a passarem veio ao de cima o mau perder os neerlandeses, que começaram a jogar de forma mais dura. José Adrião e Carlos Garrancho que o digam, já que além da taça trouxeram para Portugal algumas nódoas negras oferecidas pelos jogadores do RC Lichtstad. A certa altura do encontro os locais passarem mesmo a jogar temporariamente com menos um homem na quadra, pois o durão Kippels entrou e quase de imediato viu o cartão vermelho por uma entrada à margem da lei. «Os jogadores do Sesimbra não eram apenas valentes, eram também mártires, à força da força neerlandesa. Havia sangue no rosto de Garrancho, suor em todas as camisolas, e as lágrimas de alegria estavam quase a saltar dos olhos dos portugueses ali presentes», escrevia Orlando Dias Agudo. Farto de levar pancada, Garrancho a escassos minutos do fim fez uma falta que lhe valeu não só o cartão amarelo como beneficiou os locais com um livre direto. A última oportunidade para o RC Lichtstad levar o jogo para prolongamento. «Silêncio absoluto. O árbitro apitou, Trudo Van Gemert rematou… e a bola foi desviada por Fernando António. Pouco depois o sinal de recolher às cabines quase coincidiu com o saltar da primeira rolha de garrafa de champanhe. Foi quando se chorou, no ombro do vizinho, do colega de equipa, do treinador, no banco do adepto que fez questão de gastar umas notas para ajudar a trazer a taça para Sesimbra», assim relatou o jornalista. A festa durou até às tantas. Primeiro em Eindhoven, com os responsáveis do RC Lichtstad a aceitarem a derrota com desportivismo e a convidaram a comitiva lusa para um jantar num restaurante chinês naquela cidade. E depois, claro, na chegada a Portugal, onde Fernando António, José Pedro, Carlos Garrancho, José Adrião, Carlos Cunha, Carlos Pereira, Vítor Afonso, Carlos Silveira, Guedes, e o treinador Ernesto Meireles foram recebidos como heróis. E é como verdadeiros heróis imortais que estes homens continuam hoje, mais de 40 anos depois, a ser recordados na encantadora vila piscatória de Sesimbra.