Charles George,vencedor do I Porto-Lisboa |
A recente passagem pela formosa cidade das Caldas da Rainha
abre caminho para a memória que hoje vamos evocar nas nossas vitrinas virtuais.
A história leva-nos até 1911, ano em que se disputou a primeira grande prova do
ciclismo português: a clássica Porto-Lisboa.
Esta memória foi tema de conversa na nossa passagem pelo
Museu do Ciclismo, situado precisamente nas Caldas da Rainha, ao qual efetuamos
uma breve mas fascinante visita que nos levou a percorrer inúmeros capítulos da
História de uma modalidade popular e muito acarinhada em Portugal. Ali, fomos
guiados pelo conhecido entusiasta e profundo conhecedor da(s) História(s) do
ciclismo nacional e internacional, Mário Lino, figura ilustre da modalidade
(enquanto historiador) que nos deixou verdadeiramente encantados com as suas
memórias velocipédicas. Uma delas abordou precisamente a primeira edição da corrida
Porto-Lisboa, realizada a 5 de novembro de 1911. Esta foi, como já foi
referido, a primeira grande competição velocipédica a surgir no nosso país, e
que para muitos historiadores terá servido de rampa de lançamento para a atual
prova rainha do ciclismo luso, a Volta a Portugal.
Recuando um pouco mais no tempo, e em jeito de nota de
rodapé, para lembrar que os primeiros registos de competição velocipédica em
Portugal remontam ao século XIX. Reza a História que em 1885 no âmbito das
competições de atletismo organizadas pelo Ginásio Club Português decorrem no
Hipódromo de Belém corridas de bicicletas, tendo nelas participado e triunfado
nomes como Domingos Basto, Jorge Norton, ou Herbert Dagge, este último tido
como o pai do ciclismo em Portugal. É
nesse mesmo século XIX que aparece o primeiro grande ciclista português, o
figueirense José Bento Pessoa, que até finais deste século vence inúmeras
provas – realizadas, sobretudo, em velódromos – que se vão disputando em Lisboa
e no Porto, mas também no estrangeiro.
Nos inícios do século XX o ciclismo ganha força em Portugal,
com a ocorrência das provas de estrada, como é o exemplo do Caldas-Lisboa
(1901), do Grande Prémio de Outono (1906), ou do Campeonato da Rampa (1908),
entre outras. Esta popularidade terá levado a que em 1911 a União Velocipédica
Portuguesa (UVP) idealizasse uma prova de maior calibre, à semelhança do que
acontecia em França e Itália, por exemplo, onde clássicas de uma só etapa como
a Bordéus-Paris ou a Milão-San Remo começavam a centrar em si os olhares de um
número crescente de entusiastas. Ainda segundo a História, a primeira vez que a
UVP tentou colocar em prática o Porto-Lisboa, a intenção saiu gorada por falta
de participantes! Facto ocorrido em 1910, quando dos inicialmente 20 inscritos
naquela que seria a primeira edição da clássica
apenas três marcaram presença na linha de partida! Face a isto, a realização
da prova foi cancelada.
Tal não iria acontecer no ano seguinte, quando a UVP lançou
de novo a ideia de realizar a prova. Assim, no dia 5 de novembro, 15 ciclistas
compareceram na Praça da Batalha, no Porto, para dar vida aquela que hoje
encarada como a primeira grande competição de ciclismo a ter lugar em Portugal
e que durante a sua existência foi considerada a grande clássica velocipédica cá do
burgo. Nesse dia, ou melhor, nessa noite, já que os ponteiros do relógio
marcavam a uma e meia da manhã, partiram da Praça da Batalha os seguintes
ciclistas: Alberto Albuquerque, Luís Baptista, Joaquim Marques de Sá, Artur de
Campos, Charles George, Joaquim Dias Maia, Carlos Fernandes, Luís Policarpo da
Silva, Joaquim de Oliveira, João de Lacerda, José da Costa Nascimento, Joaquim
Delgado, Faustino Rosa da Silva, Silvério Rocha e Laranjeira Guerra. Homens
cujos nomes entram pois na História. Segundo registos da atual Federação
Portuguesa de Ciclismo, a prova teve inúmeras peripécias ao longo dos seus
340km – a distância entre as duas maiores cidades do país –, como, por exemplo,
o facto de um grupo ter seguido por Espinho e outro pelos Carvalhos. Outro
episódio caricato alude ao acordo para divisão do prémio final entre Laranjeira
Guerra, João Lacerda e Faustino Rosa, os quais estavam certos da
desclassificação dos seus colegas que haviam seguido pelo lado errado. Porém, a
caravana lá chegou a Lisboa, 17 horas/48minutos/34 segundos após a partida,
tendo o francês Charles George (do Lusitano) cortado a meta na primeira
posição. No entanto, este seria um falso arranque para a clássica, tendo a UVP anulado a prova pelas irregularidades atrás
descritas.
Como já foi dito, o Porto-Lisboa foi até ao aparecimento da
Volta a Portugal a prova mais popular do ciclismo nacional, juntando nas
estradas por onde serpenteava, e
desde a sua primeira edição, largos milhares de pessoas para ver e incentivar o
pelotão. A clássica realizou-se até
2004, sendo que ao longo da sua história teve algumas interrupções, umas vezes
por falta de verbas para a colocar na estrada, outras devido às duas Guerras
Mundiais. O já referido aparecimento da Volta a Portugal (em 1927) e o facto de
nos anos 70 a clássica ser dividida
em duas etapas acabaria por anunciar uma lenta morte anunciada, algo que iria
acontecer no início do novo milénio.
Estes foram alguns dos factos históricos que tivemos
oportunidade de conhecer, ou reavivar, na vista ao Museu do Ciclismo, pela mão
da verdadeira enciclopédia humana
sobre tudo o que rodeia esta modalidade, o senhor Mário Lino. Ele é o grande
dinamizador deste espaço sagrado do ciclismo, foi ele que doou o seu imenso e
rico espólio para criação deste museu, que além de deliciosas fotografias que nos levam a visitar décadas e décadas de
história do ciclismo em Portugal, agrega ainda troféus, camisolas, páginas e
recortes de jornais, bicicletas (pois claro) e muitos outros documentos
históricos que nos deixaram deslumbrados. «Esta é apenas uma pequena parte do
meu espólio. Tenho muito mais!», palavras do próprio Mário Lino, que ofereceu
então parte da sua coleção não só à sua cidade das Caldas da Rainha, como
também, e sobretudo, ao ciclismo e à sua História. Bem haja.
Terminamos esta nossa evocação à primeira clássica
Porto-Lisboa com uma série de fotografias por nós registadas na inesquecível
visita ao Museu do Ciclismo, destacando as primeiras duas imagens da série,
onde em primeiro lugar surge a histórica ficha de participação no I
Porto-Lisboa assinada pelo vencedor da prova, Charles George, ou como Carlos
Jorge, como o próprio se apresentou – e aqui reside um apontamento curioso! – e
também a vitrina dedicada única e exclusivamente a esse histórico dia 5 de
novembro de 1911.
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