ANSELMO FERNANDEZ (Futebol): Nunca uma passagem
tão fugaz pelo comando técnico de uma equipa gerou tanto sucesso como aquele
angariado por este “mestre da tática”. Pelo seu punho ajudou o Sporting Clube
de Portugal – o seu clube do coração – a escrever uma das páginas mais reluzentes
da sua gloriosa história. O seu amor ao futebol era puro e desinteressado, tão
desinteressado que nunca quis viver às custas desta nobre modalidade. Assim não
o tivesse feito - por outras palavras, se tivesse abraçado a bola como
profissão a tempo inteiro - e hoje estaríamos aqui a recordar os feitos de uma
lenda mundial das táticas como foram Herbert Chapman, Hugo Meisl, Vittorio
Pozzo, Sepp Herberger, Bobby Robson, Alf Ramsey, Rinus Michels, entre outros,
muitos outros homens que mais do que terem conquistado títulos de grande
prestígio internacional ao longo das suas carreiras ajudaram o desporto rei a
evoluir. Foram os cientistas da bola, imaginando e aplicando novos conceitos táticos
que revolucionaram o jogo ao longo de décadas. A ilustre personalidade de hoje
andou muito perto do caminho da imortalidade no que concerne aos “mestres da
táctica” já que também ele era um visionista, um homem que vivia adiantado no
tempo.
Sem
mais demoras apresentamos Anselmo Fernandez, o arquiteto, o homem que conduziu
o Sporting à conquista da Taça dos Vencedores das Taças em 1964. Mas já lá
vamos.
Anselmo
Fernandez nasceu em Lisboa a 21 de agosto de 1918 e desde cedo – como tantos
outros – se deixou enfeitiçar pelo bichinho da bola. Aos 16 anos iniciou a sua
curta carreira de futebolista no emblema da sua paixão, o Sporting. E curta
porque uma apendicite o afastaria de uma possível carreira promissora. Desistiu
do futebol mas não do desporto, enquanto praticante, sendo que tempos mais
tarde iniciaria uma aventura no râguebi. Numa altura em que o profissionalismo
no desporto estava ainda a léguas de ver a luz do dia Anselmo Fernandez nunca
perdeu os estudos de vista, pelo que na hora de eleger uma profissão optou pela
arquitetura.
Uma
área onde foi mestre, não só nos edifícios que criou – entre outros foi
responsável pela construção do Hotel Tivoli, e da Reitoria da Universidade,
ambos em Lisboa, e com Sá da Costa foi também um dos mentores do projeto do
antigo Estádio José de Alvalade – mas também nos projetos táticos que haveria
de desenhar de leão ao peito na década de 60.
Possuidor
de um estilo de treino muito particular – entre outros aspetos foi o primeiro
treinador português a recorrer ao vídeo para analisar os adversários – Anselmo
Fernandez é chamado em 1962 a substituir o mítico treinador húngaro Joseph
Szabo no comando do seu Sporting. Faria cinco jogos, e nos cinco obteve outras
tantas vitórias. Desta primeira passagem pelo banco leonino encontrei recentemente
um relato que o próprio Anselmo Fernandez fez ao jornal “A Bola”, o qual passo
a reproduzir na integra:
Em
1962, dirigentes do Sporting pediram-lhe que se tornasse supervisor técnico do
futebol do clube, para apoiar Szabo, que era já treinador com a estrela
empalidecida. «As coisas estavam a correr mal, chamaram-me a dar um jeito, em
cinco jogos cinco vitórias, uma delas, sensacional, sobre o FC Porto, no
Porto. Os portistas, depois de terem empatado na Luz, ficaram com o título
quase garantido, mas nós acabámos por tramá-los...»
Foi
nesse jogo do Porto que Anselmo Fernandez trouxe à colação os primeiros
indícios da sua argúcia. E da sua personalidade. «Para esse jogo, não viajara
com a equipa. Quando chegaram ao Porto, já eu estava no Hotel Batalha.
Disseram-me que o Carvalho se portara
mal e
que o Lúcio decidira, por si, comer três pregos e beber três cervejas em
Aveiro, onde parámos para comer uma sande de fiambre e beber um sumo. Disse
logo ao Juca, que era o treinador de campo, que não jogariam. Ficou em pânico!
Quem poderia substituí-los? Disse-lhe que o Libânio e o Morato. Houve logo quem
pensasse que eu endoidecera. Mais convencidos disso ficaram quando me recusei a
ir para o banco e quando vibrei com o golo do empate do... F. C. Porto! Manuel
Nazaré, que me acompanhara para um recanto do relvado, perguntou-me, então, o
que se passara. Disse-lhe que aquele golo do F. C. Porto, pouco antes do
intervalo era uma... leitaria, que, assim, ganharíamos pela certa. Assim foi,
vencemos por 3-1. O Campeonato acabou, ofereceram-me uma fortuna, não quis, não
era parvo e como era arquiteto...»
Ao
jantar, depois do jogo maldito, os diretores estavam desolados. Aparentemente
resignados. «Manuel Nazaré afirmou-me que nada haveria a fazer, que estávamos
lixados. Gracejando, disse-lhe que comigo como treinador talvez não... O
desabafo passou como ironia. Nem eu queria que fosse outra coisa. No domingo
seguinte, contra o Olhanense, estava o Sporting empatado,
1-1,
deixei o camarote, 15 minutos antes de o jogo terminar, cheguei a casa, disse à
minha mulher que não tardaria a tocar o telefone. Assim foi. Era o Nazaré a
convidar-me para treinador. Aceitei e chamei o Francisco Reboredo, que estava
nos juniores do F. C. Porto, para treinador de campo. Na estreia, contra o
Benfica, na Luz, empate a 2-2. E quarta-feira, aquele jogo mágico dos 5-0 ao
Manchester, a caminhada fulgurante para a conquista da Taça das Taças...»
Pois é,
a epopeia começa aqui a escrever-se no célebre jogo da 2ª mão em Alvalade ante
o Manchester United treinado por outra lenda da tática, Matt Busby. Missão
impossível para muitos, incluindo grande parte da família sportinguitsa, o que
é certo é que naquela noite o futebol português viveu um dos momentos mais
felizes e épicos da sua longa e gloriosa história, muito à custa do Sporting e
em particular do homem que comandava os seus destinos desde então: o “arquiteto”.
5-0 e a eliminatória estava virada e o Sporting alcançado as meias-finais da
prova europeia. O poderoso Manchester tinha sido vergado face a uma exibição
do... outro mundo de 11 leões indomáveis. Mas a viagem de sonho não iria
ficar-se por ali, muito longe disso. Antuérpia, bela cidade belga, seria o
porto de destino – final – da nau leonina. Localidade onde foi realizada a
finalissíma da TVT dessa temporada na sequência de um empate a três golos na
final de Bruxelas. Em Antuérpia Morais deu aso ao sonho de trazer para Portugal
a primeira e única TVT. E tudo aconteceu graças a um golo de canto direto... o
cantinho do Morais como ficou eternizado. O Sporting vencia assim o seu único –
até à data – troféu internacional. Um vitória arquitetada por Anselmo
Fernandez, um homem que durante essa gloriosa campanha europeia não quis
receber um único tostão que fosse do clube. Fez tudo por amor... amor ao
futebol e ao Sporting.
“A
Bola” recordou então que...
No
entanto, quando Brás Medeiros tomou a presidência do Sporting, Jaime Duarte
decidiu propor-lhe um verdadeiro contrato de treinador, oficializando uma
situação que não era
justo
continuar assim. «Ofereceram-me 15 contos por mês, valor que, naquela altura,
era baixo para um treinaador, sobretudo depois da vitória na Taça das Taças.
Aceitei. Só recebi um mês, porque, já na época seguinte, depois de ganharmos
4-0 ao Bordéus, demiti-me simplesmente porque, antes do jogo, o vice-presidente
Pereira da Silva decidiu enviar aos emigrantes em França uma carta de captação
de simpatias, com as assinaturas de 11
jogadores.
Leu a carta, ao almoço, embevecido, perguntou-me a opinião, disse-lhe que a
ideia era gira, mas que achava que, por enquanto, ainda era eu o treinador, não
percebendo, por isso, porque estavam lá aqueles 11 nomes e não outros. Ganhámos
e... em Lisboa, demiti-me. Nunca mais voltei ao Sporting...»
Anos
mais tarde quando treinava a CUF – conjunto que levou à Taça UEFA – um terrível
acidente de viação na ponte sobre o Tejo (Lisboa) colocou-o às portas da morte.
Foi submetido a uma delicada operação ao cérebro, passando vários meses em
coma. Driblou a morte e remeteu desde então o futebol para o baú das
recordações. À “A Bola” recordaria anos mais tarde que «as luzes e a glória
perturbaram-me. Por isso não me magoa que 99% dos sportinguistas possam não
saber que o treinador do Sporting que ganhou a TVT foi um arquiteto de profissão,
filho de espanhóis de Zamora, mas que nasceu em Lisboa e fez do Sporting a sua
mais apaixonante ligação a Portugal».
Morreria
a 19 de Janeiro de 2000, em Madrid.
Legenda
das fotografias:
1-
Anselmo Fernandez
2- A
célebre equipa do Sporting que conquistou a TVT
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