PINGA
(Futebol): Estava o Mundo ainda muito longe de se maravilhar com as fintas e
sprints de Cristiano Ronaldo e já a ilha da Madeira produzia diamantes raros no
que toca à arte de conduzir a bola. Esta é uma história que teve início há mais
de 100 anos, altura em que esta imortal lenda do “desporto rei” veio ao Mundo.
Estávamos em 1909, numa época em que futebol vivia a sua era romântica,
simples, puro, e consequentemente apaixonante... sem os tiques do mediatismo
económico em que hoje em dia se encontra mergulhado.
Na
cidade do Funchal nascia no dia 30 de setembro desse longínquo 1909 um menino,
um menino que recebeu a graça de Artur... Artur de Sousa, o seu nome completo.
Como tantos outros meninos da sua idade foi crescendo contagiado pelo fascínio
do futebol, dando asas à sua paixão em alegres jogos de rua disputados com uma
bola de trapos e com os pés descalços. Foi-se tornado homem, e a sua perícia
com a bola nos pés foi-se fazendo notar cada vez com mais intensidade, sendo
que ainda no período da adolescência começaria a mostrar os seus dotes ao
serviço do Marítimo. Encantaria pequenos e graúdos com as cores verde-rubras
dos insulares vestidas, não demorando muito a que o seu nome começasse a
despertar interesse junto dos principais emblemas do continente.
Um
desses interessados era o Futebol Clube do Porto, clube que em finais dos anos
20 do século passado era orientado pelo seu lendário antigo guarda-redes Mihaly
“Miguel” Siska. Em busca de pérolas para o seu clube Siska desenvolve todos os
esforços para trazer outro mestre da tática para a capital do Norte do país
para o auxiliar na tarefa de conduzir os “dragões” aos patamares mais altos do
futebol lusitano. Esse homem encontrava-se na altura na Madeira e tinha como
graça... Joseph Szabo. Numa conversa de húngaro para húngaro Szabo
confidenciaria a Siska que na Madeira havia um diamante por lapidar, um
avançado fora de série, e que o FC Porto tudo deveria fazer para o levar para
os seus quadros. Esse diamante era Artur de Sousa, ou melhor... Pinga, este era
o seu nome de guerra, uma alcunha que tinha qualquer coisa a ver com o seu pai,
presume-se.
Transferência polémica
Szabo e
Pinga rumariam então ao Porto, onde ai chegariam a dois dias do Natal de 1930.
Contudo a chegada do promissor avançado ao clube da Invicta foi tudo menos
pacífica, já que os dirigentes do clube que representava na sua ilha, o
Marítimo, acusaram os portistas de terem feito umas falsificações na
documentação que haveria de selar o vínculo do esplêndido jogador ao FC Porto.
Troca de acusações para aqui e para acolá de parte a parte mas o que é certo é
que Pinga era em finais dos anos 30 pertença do Porto.
Desde
logo mostrou os seus atributos. A bola era como se fosse sua escrava, fazia
tudo o que ele queria. Driblava de uma forma quase mágica e rematava com um
poder quase humanamente impossível. Numa altura em que o profissionalismo
estava ainda muito longe de chegar ao futebol Pinga iria receber do FC Porto um
ordenado de 500 escudos... por baixo da mesa. Não era permitido na época os
jogadores receberem salário fixo para jogar, e como tal, e para disfarçar,
Pinga fingia que auferia esse salário através do seu emprego na Fábrica de
Sebastião Ferreira Mendes, um homem que anos mais tarde chegaria à presidência
dos portistas.
Muito
rapidamente tornaria-se na principal referência do FC Porto de Szabo e Siska, a
estrela da equipa, colocando para segundo plano jogadores como Valdemar Mota,
por exemplo, o qual em 1928 havia sido o único atleta portista a ter a honra de
representar a Seleção Nacional de Portugal nos Jogos Olímpicos de Amesterdão. E
por falar em seleção das “quinas” é de sublinhar que ainda com as cores do
Marítimo Pinga seria convocado para representar o combinado lusitano, num jogo
contra a Espanha, velha inimiga da nação portuguesa que levaria (corria o ano
de 1930) do Ameal um triunfo de 1-0.
Os
espanhóis ficaram desde logo loucos com a mestria de Pinga, e elogios não
faltaram na imprensa da época do país vizinho para com aquele jovem talento.
Envergando
as cores do “dragão” Pinga foi colecionando títulos atrás de títulos: 3 vezes
campeão da Liga, 2 vezes campeão nacional da 1ª divisão, 1 campeonato de
Portugal, e 13 títulos de campeão distrital (da Associação de Futebol do
Porto). Isto a juntar aos 3 títulos de campeão do Funchal conquistados ao serviço
do Marítimo. Palmarés impressionante, não há dúvida! De entre estas conquistas
destacam-se a primeira edição do Campeonato Nacional da 1ª Divisão, corria a
época de 1934/35, sob o comando técnico de Szabo. Título do escalão maior do
futebol português que seria repetido em 1938/39, aqui já sob a batuta de Siska,
uma vez que Joseph Szabo havia partido para o sul do país para orientar o
Sporting.
Um dos “Três Diabos do Meio-Dia”
Com o
passar dos anos Pinga tornara-se não só na estrela-mor do clube da Invicta como
também o seu patrão, o seu estratega, o homem capaz de resolver um jogo num
lance de génio. E o FC Porto deve-lhe muitas tardes de glória que compõem a sua
prestigiada história. Num célebre encontro (ocorrido em 1933) entre os
portistas e o First de Viena, da Áustria, uma das mais poderosas equipas do
Mundo da época, Pinga fez uma exibição memorável. Ele e mais dois companheiros
seus, nomeadamente Valdemar Mota e Acácio Mesquita. Um trio que compunha o
mágico meio-campo do FC Porto que nessa partida realizada à hora de almoço
fizera “gato-sapato” da equipa-maravilha do First com jogadas absolutamente
encantadoras e... diabólicas. E assim foi de tal maneira que Rodrigues Teles os
chamaria de “Os Três Diabos do Meio-Dia”, alcunha que ficou para sempre nos
anais da história do futebol.
Anos
mais tarde, por alturas da sua despedida dos retângulos de jogo, e quando recordava
essa mítica partida (a qual terminou com a vitória portista por 3-0) Pinga
opinaria que «Aquilo é que era jogar... Que me desculpem a vaidade, mas
parece-me que nunca mais se arranjam três rapazes da bola tão intimamente
ligados a acertar na borracha. Se até nós, às vezes, nem sabíamos como aquilo
era...».
Mas nem
tudo foram coroas de glória na carreira deste génio. Considerado durante anos a
fio como o melhor futebolista português era pois com naturalidade que os
adversários recorressem a todo o tipo de faltas para o travar em campo. Algumas
bem duras. Como tal não era de estranhar a ocorrência de lesões graves. Neste
aspeto foi dos primeiros jogadores em Portugal a sujeitar-se a uma operação ao
menisco, correndo mesmo o risco de não poder voltar a jogar. Face a isto o
desânimo de Pinga para com o futebol ia aumentando. A beleza do jogo ia-se
esfumando na opinião do craque. Mas não era apenas pela violência imposta pelos
adversários que o futebol começava a desagradar a Pinga, também pelas atitudes
de certos dirigentes começavam a ter consigo. E neste último ponto é de
recordar um episódio, ocorrido em 1933, ano em que os dirigentes do FC Porto
doridos pela perda do Campeonato de Portugal decidem refrescar a sua equipa. E
fazem-no indo contratar três jogadores ao vizinho Boavista, oferecendo a cada
um deles 800 escudos. Injustiçado com esta atitude Pinga resolve fazer as malas
e regressar à sua ilha da Madeira. Sabendo disto os dirigentes do Porto correm
atrás dele na tentativa de o demover de tal decisão, e é já em plena Estação de
S. Bento, onde o craque se preparava para apanhar o comboio para Lisboa e dali
embarcar para o Funchal, que os responsáveis portistas o conseguiram convencer
a permanecer na Invicta, acenando-lhe com um ordenado de... 800 escudos. Para
evitar novas tentativas de “fuga” da sua estrela-mor o FC Porto foi-lhe
aumentando gradualmente o salário com o avançar dos anos, e em 1937 era já o
futebolista mais bem pago de Portugal, auferindo um vencimento de 1500 escudos.
Mais de metade daquilo o que ganhava outra lenda do futebol português dos anos
30/40, o sportinguista Peyroteo.
O emocionado adeus
E em
1946 este conto de fadas futebolístico chegava ao fim, ano em que Pinga disse
adeus aos campos, em que colocou um ponto final a uma carreira ímpar. Para
assinalar este momento o FC Porto organizou uma festa de despedida, um jogo
entre a sua equipa principal e uma seleção formada por jogadores do Sporting,
Benfica, Belenenses, e Académica. O encontro realizou-se no mítico – e já
desaparecido – Estádio do Lima, no Porto, e ao recinto ocorreu uma numerosa
massa de apaixonados pela arte que Pinga criou ao longo de mais de uma década e
meia pelos campos de futebol lusitanos.
O Lima
estava cheio para dizer adeus ao seu ídolo. O público chorou de emoção quando
Pinga abandonou o relvado. O seu nome foi gritado com uma tremenda emoção no
meio de uma chuva de aplausos vindos das bancadas que tantas vezes o viram
brilhar. E Pinga saiu do relvado, envolto em lágrimas, olhando para a multidão
que dele se despedia, e com a voz trémula ia deixando “obrigados” aqui e ali.
Deixou uma impressionante marca de 400 jogos realizados e 396 golos apontados
(!!!), uma média de quase um golo por encontro. Em 35/36 foi mesmo o
goleador-mor do Nacional da 1ª Divisão com 21 golos.
Deixou
de jogar mas não deixou o vício do futebol. Penduradas as botas iniciou uma
carreira de treinador, e embora com menos êxito do que fizera como jogador
também nesta nova função fê-lo com um certo brilho. De recordar uma
surpreendente vitória do Tirsense, por si orientado, diante do poderoso Sporting
dos “Cinco Violinos”, em jogo da Taça de Portugal, que ditaria o afastamento
dos “leões” da prova.
No seu
FC Porto ainda foi treinador-adjunto de outro mestre do futebol, Cândido de
Oliveira, e mais tarde seria treinador das camadas jovens azuis-e-brancas.
Aliás, em 1945, numa crónica sua publicada no jornal que ajudou a fundar, “A
Bola”, mestre Cândido confirmou a sua admiração profunda por Pinga, ao dizer
que: «Artur de Sousa foi um jogador fulgurantíssimo, verdadeiramente genial.
Talvez o maior talento de jogador do nosso futebol. Tudo nele era prodigioso: a
conceção, como a execução; a imaginação viva e riquíssima marcada na escolha do
lance ou do toque subtil, ou a finta intencional e preconcebida, ou no pormenor
em que revelava a sua grande inteligência prática, o profundo e exato
conhecimento do jogo e dos jogadores e até sentido artístico - de verdadeiro
artista do futebol.»
Por
estas alturas o futebol não era o único vício da lenda. O vinho era outra das
suas paixões, uma terrível paixão que o haveria de levar à morte em 1963.
Vitimado por uma cirrose morreria a 12 de julho desse ano de 63 na cidade que
ainda hoje o recorda como um dos maiores génios de todos os tempos da arte de
manusear a bola, a cidade do Porto.
Legenda
das fotografias:
1- O
genial Artur de Sousa, imortalizado no mundo do futebol como Pinga
2- A
equipa do FC Porto campeã nacional em 1938/39
3- Os
célebres "Três Diabos do Meio-Dia"
4-
Pinga com as cores da Seleção Nacional, a qual representaria por 23 ocasiões,
tendo apontado nove golos
5-
Placa toponímica com o seu nome numa Rua do Funchal
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