Trazido
pela mão dos irmãos Pinto Basto em finais do século XIX o futebol em Portugal
iniciou a sua curva ascendente no que a popularidade diz respeito nos inícios
dos 100 anos que se seguiram, altura em que surgiram os primeiros duelos acesos
entre os clubes que iam florescendo a uma velocidade estonteante, duelos que
começavam a despoletar nos corações do povo lusitano a paixão por aquele belo
jogo nascido em Inglaterra. O primeiro grande centro futebolístico português
foi Lisboa, cidade que em finais do século XIX e princípios do século XX viu
nascer uma série de clubes que ajudaram a enraizar o jogo na cultura lusitana.
Nasceram as primeiras rivalidades clubísticas, os primeiros disputadíssimos
torneios, e naturalmente as primeiras lendas dos retângulos de jogo. Contudo, e
talvez porque fosse algo novo, a organização foi digamos que o calcanhar de
aquiles do jovem futebol português. Nos anos iniciais as regras muitas vezes
não eram respeitadas, causando o caos entre clubes, jogadores, e adeptos. Foi
preciso esperar até 1910 para que finalmente o futebol fosse estruturado dos
pés à cabeça, tendo para isso muito contribuído o nascimento da Associação de
Futebol de Lisboa (AFL), a primeira associação do país, e para muitos a
primeira entidade reguladora a sério do fenómeno futebolístico luso.
Na
viagem de hoje ao passado vamos então recordar as incidências do primeiro
Campeonato (regional) de Lisboa organizado pela AFL, e recordar o seu primeiro
campeão oficial, aquele que na época era o clube mais bem estruturado do ainda
criança futebol nacional.
Como já
vimos as competições inter-clubes começaram a surgir um pouco por todos os
quatro cantos da capital portuguesa nos inícios do século passado. Esta
atividade não era mais do que o resultado dos elevados índices de popularidade
que o futebol granjeava na urbe lisboeta. A imprensa começava a dar destaque
aos jogos que se desenrolavam aqui e acolá, e com naturalidade surgiram pois os
primeiros campeonatos regionais. Em meados de 1906 os principais emblemas
lisboetas da época reúnem-se com a intenção de criar um organismo que
orientasse e coordenasse uma grande competição. Dessa reunião nasce a Liga
Football Association (LFA), o organismo (presidido por Joaquim Costa e
secretariado por um tal de José de Alvalade, esse mesmo, o mentor do Sporting Clube
de Portugal) que tutela o primeiro campeonato de Lisboa, cujo pontapé de saída
foi dado na temporada de 1906/07. Grande dominador do futebol daqueles dias o
Carcavelos Club - composto exclusivamente por jogadores ingleses a laborar no
Cabo Submarino - conquistou o título, levando a melhor sobre o Benfica, o
Lisbon Cricket, e o Clube Internacional de Futebol, popularmente conhecido como
CIF.
A arte
futebolística dos ingleses do Carcavelos seria vincada nas duas edições
seguintes, com a obtenção de mais dois ceptros regionais, sendo que na
temporada de 1907/08 o Campeonato de Lisboa passa a ser organizado por uma nova
entidade, a Liga Portuguesa de Futebol (LPF), a sucessora da LFA. Januário
Barreto, médico de profissão, árbitro, jogador, e ilustre dirigente desportivo
- exerceu entre outros cargos o de presidente do Sport Lisboa - foi o primeiro
presidente do recém-nascido organismo. Mas a vida da LPF seria curta.
Ainda
antes do Benfica colocar em 1909/10 um ponto final no reinado de três anos
consecutivos dos ingleses do Carcavelos Club na competição, mosquitos por
cordas começaram a surgir em catadupa no seio do futebol lisboeta. Com as
rivalidades entre clubes ao rubro, as águas agitavam-se entre adeptos,
jogadores e dirigentes. A indisciplina reinava nas relações entre clubes,
causadas por queixas contra árbitros, ou decisões da LPF. Os regulamentos
raramente eram cumpridos. Os jogadores mudavam de camisola quando bem lhes
apetecesse, os clubes desistiam a meio das provas, além de que a segurança não existia
numa época em que as rivalidades levavam os adeptos a ultrapassar a fronteira
que separa os bons costumes da selvajaria. Tudo isto, ao que se juntou a morte
de Januário Barreto, levou a que em 1910 a LPF fechasse portas. O futebol vivia
em tumulto, tal como aliás o próprio país, que se encontrava em transição do
regimo monárquico para o da república.
Tumulto
cujo ponto final foi colocado a 23 de setembro desse longínquo 1910, dia em que
nasce a Associação de Futebol de Lisboa, a entidade que haveria de dinamizar o
futebol associativo em Portugal dali em diante.
AFL que
tomou de imediato conta do Campeonato de Lisboa, tendo logo em 1910/11 chamado
a si a organização do certame, que iria contar com a participação de sete
clubes, nomeadamente o CIF, o Benfica, o Sporting, o Campo de Ourique, o
Império, o Lisboa Football Club, e o União Belenense. Notava-se a ausência de
alguns clubes históricos dos primeiros anos de futebol em Portugal, desde logo
os ingleses do Carcavelos Club, que preferiam agora competir apenas em jogos
particulares (!), enquanto que emblemas como o Lisbon Cricket e o Gilman
desapareciam, tendo os seus valorosos atletas rumado para outras paragens. O
CIF, por exemplo, reforçou-se com alguns atletas do Lisbon Cricket, ao passo
que o Império recebeu quase toda a equipa (!) do Gilman. A AFL organizou o
primeiro Campeonato (oficial) de Lisboa em três categorias: primeiras,
segundas, e terceiras, sendo que as duas últimas se equiparavam a uma espécie
de campeonatos de reservas.
O
primeiro "regional" lisboeta teve início a 13 de novembro de 1910,
tendo logo na ronda inaugural surgido uma enorme surpresa. O campeão da época
anterior, o Benfica, foi derrotado em casa pelo União Belenense, por 2-3 (!), o
único desaire dos encarnados liderados pelo seu dirigente/treinador/jogador
(!!!) Cosme Damião, mas que haveria de ser decisivo nas contas finais. Outro
grande candidato ao título que iria tropeçar lá mais para a frente do
campeonato era o Sporting, o clube aristocrata da sociedade lisboeta, o clube
abastado financeiramente, que tinha nas suas fileiras alguns dos melhores
jogadores lusos de então.
Os
irmãos Stromp (Francisco e António) eram duas das principais estrelas leoninas,
aos quais se juntavam os irmãos Catatau (António Rosa Rodrigues, e Cândido Rosa
Rodrigues), responsáveis pela primeira grande traição do futebol lusitano no
início do século passado.
Figuras
de destaque dos primórdios do Benfica, António Rosa Rodrigues e Cândido Rosa
Rodrigues desertaram do clube no final da temporada de 1906/07, rumo ao grande
rival Sporting, que os aliciou com... banhos quentes e toalhas lavadas no final
de cada jogo/treino (!), mordomias que o então pobre Benfica não possuía.
Grande figura daquele Sporting era também Francisco dos Santos, o primeiro
emigrante de sucesso do futebol português.
Francisco
dos Santos revelou-se como um cerebral médio-ofensivo no Casa Pia, em finais do
século XIX, tendo posteriormente representado o Sport Lisboa - antecessor do
Sport Lisboa e Benfica - antes de rumar ao estrangeiro para estudar... Belas
Artes. Primeiro em Paris e depois em Roma, sendo que na Cidade Eterna para
fazer face às enormes dificuldades financeiras vivenciadas arranjou emprego
como... jogador de futebol. E em boa hora o fez, pois tornou-se de imediato
numa referência do jovem calcio transalpino ao serviço da Lázio. No emblema da
capital italiana destacou-se então, não sendo de admirar que a braçadeira de
capitão lhe fosse entregue logo na primeira época! Foi um dos artistas do
primeiro dérbi romano, entre Lazio e Roma, tendo o ilustre (jornal) Gazzetta
dello Sport sublinhado que nesse jogo histórico estiveram em evidência dois
jogadores... «o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55
quilos foi, impressionante, dos melhores em campo...». De regresso a Portugal
(em 1908) assinou pelo Sporting, ali terminando a sua brilhante carreira de
futebolista, antes de se dedicar em exclusivo à atividade de escultor que o
haveria de eternizar na História de Portugal.
Mas as
estrelas só por si não ganham jogos, e o Sporting encontrou muitas dificuldades
ao longo da sua caminhada no primeiro "regional" oficial de Lisboa.
Dificuldades criadas sobretudo pelos seus dois maiores rivais, o Benfica, com
quem perdeu na 6ª jornada por 5-1, e o CIF, que derrotaria os leões nos dois
confrontos realizados, o primeiro (na 5ª jornada) por 1-0, e o segundo na 11ª
ronda, por 2-0. Os desaires averbados nas 5ª e 6ª jornadas - diante dos seus
principais rivais - ditaram praticamente o afastamento dos sportinguistas da
luta pelo título, a qual foi quase de forma exclusiva protagonizada pelo CIF e
pelo Benfica. Os duelos entre CIF e Benfica - cuja maior estrela era Cosme
Damião - neste campeonato terminaram empatados, um a zero golos (na 2ª
jornada), e outro a uma bola (na ronda número oito), pese embora a meta tenha
sido cortada em primeiro lugar pelos primeiros, com um total de 22 pontos,
contra os 20 dos encarnados.
Desta
forma o CIF era assim coroado como o primeiro campeão oficial da AFL. Na última
jornada do campeonato um facto caricato ocorreu no embate entre Benfica e
Sporting, ocorrido no recinto do Lisboa Football Club, o Campo dos Castelos. A
tarde futebolística teve início com uma partida das segundas categorias, cujo
vencedor foi o Benfica, por 1-0. O público afeto ao Sporting não terá gostado
da exibição do árbitro do encontro, queixando-se sobretudo do golo benfiquista,
que segundo os leões teria sido apontado em fora de jogo. O ambiente estava
incendiado, e mais ficou quando as primeiras categorias subiram ao retângulo de
jogo. O Sporting abriu o marcador, mas logo depois o Benfica restabelece a
igualdade em mais um lance... irregular, nas vozes leoninas. Estas sublinham
uma carga evidente do marcador do golo benfiquista sobre o guarda-redes da
casa, Gastão Pinto Basto. O árbitro do encontro, que por sinal era primo do
guardião leonino, e que dava pelo nome de Eduardo Luís Pinto Basto, validou o
tento, e a multidão em fúria invadiu o terreno de jogo. As cenas que se
seguiram foram o que se pode chamar de um intenso combate de boxe (!) entre
benfiquistas e sportinguistas. A AFL homologou a igualdade a uma bola, mas a
Comissão de Árbitros não concordou, tendo então sido marcado um novo jogo entre
ambas as equipas para 18 de julho de 1911, partida essa à qual o Sporting não
compareceu, alegando num comunicado que «os benfiquistas não eram dignos de
pisar as suas instalações»!
Bom,
mas voltando ao campeão, ao CIF, o clube terminou a temporada de 1910/11 com um
total de 10 vitórias alcançadas e apenas dois empates consentidos (ante o
Benfica, como já vimos), tendo entre o seu grupo de notáveis jogadores destacando-se
nomes como Eduardo Luis Pinto Basto, Merik Barley, W. Sissener, Augusto Sabbo,
ou Luis Kruss Gomes. CIF que foi digamos que o primeiro grande clube de futebol
em Portugal, sobretudo sob o ponto de vista estrutural, servindo de exemplo
para muitos outros clubes que iriam nascer nos anos seguintes. Ligado
diretamente aos introdutores do futebol em Portugal, os Pinto Basto, o CIF
alcançou assim o único título oficial da sua hoje centenária vida, coincidindo
com o nascimento de uma AFL que seria a semente para o crescimento do futebol
português no plano organizativo. O exemplo organizativo da AFL deu origem a que
mais tarde outras associações de futebol nascessem noutras regiões de Portugal
que começavam também elas a ver os seus grupos futebolísticos darem os
primeiros pontapés na bola de forma mais séria.
A figura: Eduardo Luís Pinto Basto
Oriundo
da família responsável pela introdução do futebol em Portugal Eduardo Luís
Pinto Basto foi para muitos a grande figura do primeiro campeonato oficial da
AFL. Filho do pai do futebol português, Guilherme Pinto Basto, o homem que em
1884 trouxe de Inglaterra a primeira bola, e que em 1888 organizou o primeiro
jogo, Eduardo Luís Pinto Basto herdou do seu progenitor a paixão pelo desporto,
e pelo futebol muito em particular. Além de jogador, foi árbitro, e dirigente,
tendo sido um dos rostos da fundação do CIF. À semelhança do seu pai estudou em
Inglaterra, onde teve contato com o belo jogo, e chegado a Portugal colocaria
em prática esses conhecimentos, contribuindo e muito para o crescimento do
futebol luso. O seu pai, Guilherme Pinto Basto, deu-nos a conhecer o jogo em
finais do século XIX, ao passo que Eduardo ajudou a cimentá-lo nos inícios do
século XX não só com a organização de jogos e torneios, mas também ao nível da
própria estruturação deste fenómeno. Como jogador destingiu-se sobretudo na
baliza, tal como o seu pai - mais um ponto em comum entre ambos -, tendo sido
um dos primeiros grandes keepers lusos, brilhando com as cores do seu CIF, clube
que ajudou a fundar juntamente com nomes sonantes da época como Carlos Villar,
ou Joaquim Costa. CIF que foi o primeiro clube português a jogar
além-fronteiras, facto ocorrido em 1907, quando os lisboetas foram à capital
espanhola bater o Madrid FC - antecessor do Real Madrid - por 2-0. Eduardo Luís
Pinto Basto estava na baliza. E na baliza estaria também em 1911 aquando da
primeira visita de um clube estrangeiro a Portugal, no caso os franceses do
Stade Bordelais, que enfrentaram em Lisboa além do CIF de Pinto Basto, o
Benfica e uma seleção da AFL, que na baliza tinha... Eduardo Luíz Pinto Basto.
AFL onde esta figura se distinguiu, quer como dirigente, quer como árbitro,
tendo sido um dos juízes mais conceituados da época.
Nasceu
a 6 de junho de 1886, precisamente dois anos antes do seu pai ter organizado o
tal primeiro jogo de futebol em Portugal, nos terrenos da Parada, em Cascais.
Faleceu em 1955.
Números
finais do primeiro Campeonato (oficial) de Lisboa
1-CIF:
22 pontos
2-Benfica:
20 pontos
3-Sporting:
14 pontos
4-Campo
de Ourique: 10 pontos
5-Império:
8 pontos
6-União
Belenense: 6 pontos
7-Lisboa
FC: 4 pontos
Resultados
mais dilatados
Benfica
- Lisboa FC: 15-0
Sporting
- Lisboa FC: 14-0
CIF -
Lisboa FC: 12-3
Campo
de Ourique - CIF: 0-11
Legenda
das fotografias:
1-Clube
Internacional de Futebol, o popular CIF, o primeiro campeão da Associação de
Futebol de Lisboa (AFL)
2-O
notável dirigente desportivo Januário Barreto
3-Um
dos primeiros escudos da AFL
4-Cosme
Damião, a estrela do Benfica
5-Os
irmãos Catatau
6-Jogo
entre CIF e Sporting
7-Cosme
Damião em ação contra o Império
8-Equipa
do Benfica, vice campeã regional de 1911
9-Eduardo
Luís Pinto Basto
10-Francisco
dos Santos, uma das estrelas do primeiro campeonato da AFL
Nenhum comentário:
Postar um comentário