Joaquim
MEIRIM (Futebol): Entendo que uma vida sem memórias é como que um caderno em
branco ou um álbum sem fotografias. Isto a propósito da recente comemoração de
mais um Dia do Pai, mais um dia em que o meu (pai) vagueou pela minha mente,
ali deixando recordações de uma ligação (física) que terminou cedo demais...
Foi ele, o meu pai, que me incutiu a paixão pelo futebol. Paixão que entretanto
assume hoje contornos de amor eterno, e nesse aspeto acho mesmo que o superei
no tal encantamento pelo belo jogo. Recordo muitos diálogos mantidos pela noite
dentro com ele, muitos deles em torno do futebol, ouvindo atentamente as suas histórias
sobre as lendas do passado que imortalizaram um futebol de um tempo que eu não
vivi, mas que de tanto ouvir e ler quase que posso afirmar alegremente que tive
o privilégio de assistir in loco a esses longínquos momentos de magia.
Esta
breve nota nostálgica leva-nos para a história de um homem marcou vincadamente
uma era do futebol português, mesmo não tendo alcançado nele a glória que
outros (com muito menos conteúdo intelectual e profissional) conquistaram.
Sobre ele o meu pai falava vezes sem conta, apelidando-o de "maluco",
mas um maluco no bom sentido da palavra - se é que este adjetivo pode ser
pronunciado no bom sentido -, um maluco genial, um adiantado mental para a sua
época. Esse homem é Joaquim Meirim, figura fascinante e controversa do futebol
lusitano das décadas de 70 e 80. Hoje há ainda quem o descreva como um furacão
que surgiu nos palcos principais do nosso futebol, um homem cuja peculiar
personalidade abalou o Portugal futebolístico de então. Transportando Meirim
para o presente poderíamos encara-lo como um clone de José Mourinho, pela tal
personalidade controversa, pela convicção com que sustentava as suas
argumentações - sobretudo as mais irreais aos olhos de um cidadão vulgar -,
pela eloquente forma como articulava essa mesma argumentação - mais parecendo
um filósofo da bola - e acima de tudo pelos seus então inovadores e pouco
convencionais métodos de trabalho. Se Mourinho hoje é o mestre dos mind games, Meirim foi o inventor desse
ludibriante estilo de comunicação futebolística.
Joaquim
Meirim mudou um futebol português que vivia ainda um pouco ressacado do momento
de fama obtido no Mundial de 1966, incutindo-lhe uma estranha forma de
vivacidade e excentricidade. Sim, Meirim era um excêntrico, um excêntrico
maluco, como dizia o meu pai. Um revolucionário, é isso. Mas quem era afinal
esta figura? Nasceu no Minho, em Monção mais concretamente, no dia em que se
comemoravam 25 anos da implantação da República em Portugal - 5 de outubro de
1935. O pai, o homem que admirava mais do que tudo, havia sido proibido por
Salazar de exercer a atividade de professor primário, devido às suas
inclinações políticas, as mesmas que o filho Joaquim tanto iria evidenciar ao
longo da sua carreira e que tantos dissabores lhe causaram. A família Meirim
mudou-se para Lisboa, tendo o pai agarrado o ofício de sapateiro em Alcântara.
Foi ali, num meio pobre onde reinava a classe operária, que Joaquim Meirim
cresceu e se fez homem. Pouco ou nada se sabe de Meirim enquanto futebolista do
símbolo maior de Alcântara, o Atlético. O futebol era por aqueles dias apenas um
romance de fim de semana para Joaquim Meirim, que ganhava a vida como empregado
de escritório. Mas os romances por vezes dão em casamento, quando existe paixão
e certezas de que é com aquele par que queremos partilhar a nossa existência. E
Meirim sabia desde cedo que o seu lugar era no comando de futebolistas. Após
pendurar as chuteiras noutro mítico emblema bairrista da capital, no caso o
Oriental, Joaquim Meirim obtém com 27 anos o curso de treinadores, ministrado
pelos mestres José Maria Pedroto e Fernando Vaz. Aos ensinamentos absorvidos na
Cruz Quebrada durante a referida formação, Merim acrescenta o seu peculiar e
controverso estilo, de palavras simples mas ao mesmo tempo eloquentes e
bombásticas, aliado a metodologias de treino revolucionárias e a uma relação
treinador-jogador pouco comum para a época. Em 1967/68 tem a primeira
experiência mais a sério no exercício do ofício que sempre sonhou. Orientou a
CUF, tirando o mítico emblema da cauda da tabela até ao sétimo lugar da mesma.
Adivinhando
a entrada em cena de um treinador diferente, o presidente do Varzim, João
Fernando, lança dois anos mais tarde o canto da sereia a Meirim, que
prontamente viaja até ao norte para fazer história. Quiçá o ponto alto da
história de Meirim no Atlas do Futebol Português. Os Lobos do Mar alcançam um
inédito 7.º lugar - terminando o principal campeonato português à frente do FC
Porto, por exemplo. Meirim salta então para as capas de jornais, não só pelo
feito alcançado ao serviço do modesto clube poveiro mas pela sua forma de
trabalhar e de ser. Ele apresentou ao futebol nacional estranhas metodologias
de treino, ao levar, por exemplo, os jogadores para a praia ou para matas e
montanhas ao invés de os exercitar nos retângulos de jogo. Outro traço forte da
sua personagem enquanto condutor de homens era a apetência para a psicologia,
na sua exímia capacidade de moldar a mente dos seus atletas. E aqui introduzo
uma outra lembrança do meu pai, a história que ele me contou inúmeras vezes
sempre que o nome de Joaquim Meirim vinha à baila. A famosa história do
guarda-redes Benje, o tal que sem oportunidades no Benfica viajou para a Póvoa
de Varzim onde se tornou no melhor keeper do... Mundo! O rótulo foi dado pelo
próprio Meirim, que para motivar o seu guardião incutia-lhe precisamente na
mente esse estatuto, o de melhor do planeta. E o angolano Pedro Benje entrava
nas quatro linhas com esse peso nas costas, defendendo a baliza do Varzim
com espetacularidade, mais parecendo um
gato negro a voar para agarrar todas as bolas que se lhe deparavam pela frente.
A culpa do melhor momento de Benje foi obviamente de Meirim, «o psicólogo, o
pedagogo, o padre, o preparador físico, o tático», como ele próprio se definia
enquanto treinador. Um treinador humilde e modesto, como tantas e tantas vezes
se auto-caracterizou.
A
excelente temporada na Póvoa leva-o na temporada seguinte a regressar à
capital, desta feita para treinar o quarto grande do futebol nacional, o
Belenenses. Em Belém a meta traçada no início da época foi simples: ser campeão
nacional. Muitos pensaram que Meirim estaria louco! Mas ele era um louco, um
génio louco. Na pré-época aplicou os seus inovadores métodos de treino, levando
os jogadores a correr para a praia e para as matas de Monsanto. Ao invés da
bola os atletas trepavam às árvores, mais parecendo tarzans no meio da selva. A
televisão nacional e os jornais centravam atenções naquele Belenenses e em
Meirim de um modo muito particular, que aproveitando o mediatismo que detinha
por aqueles dias lançava declarações bombásticas em direção aos adversários no
sentido de os desestabilizar. Lá está, os famosos mind-games. Ao mesmo tempo
incutia na mente dos seus jogadores capacidades que eles próprios desconheciam
possuir, a título do que fez com Benje, que estava convencido de que era mesmo
o melhor do Mundo. Mas no Belenenses as coisas não correram como o esperado, e
Meirim foi destituído do cargo. A sua carreira prosseguiu noutras paragens
(Boavista, Leixões, Salgueiros, Beira-Mar, Desportivo das Aves, Sanjoanense,
Gil Vicente, Louletano, Estrela da Amadora e Lusitano de Évora) no que restou
daquela década de 70 e em lampejos da de 80. Em finais do milénio passado ainda
regressou aos bancos para um fugaz aparição no Desportivo de Beja, mas a sua
estrela há muito que se tinha apagado. Incompreensivelmente apagado. Porquê? É
uma pergunta para a qual não encontramos resposta, até porque Merim era um
adiantado mental, um inovador, um revolucionário. Sim, um revolucionário, e
provavelmente está aqui a resposta para a perguntar anterior, ou seja, terá
sido por isso, em parte, que as portas do futebol português se foram fechando
lentamente para ele, um ativista político, um dirigente sindical, um confesso
militante do Partido Comunista Português, facto que lhe valeu tantos
dissabores. Como por exemplo, o despedimento do Leixões, assim que o presidente
deste emblema soube que Joaquim Meirim iria concorrer à Câmara de Matosinhos
pela Frente Eleitoral Povo Unido. Mas Meirim era um homem de convicção forte,
um defensor acérrimo dos seus ideais, e nunca se vendeu ao poder do futebol.
Foi um homem à frente do seu tempo. Muito à frente. Joaquim Meirim deixou o
Mundo terrestre em maio de 2001 vítima de doença prolongada, tal como o meu
pai, a quem dedico esta breve memória de hoje.
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